Ou: como assumir que você é um bicho selvagem em um mundo que exige senha de seis dígitos pra tudo.

“Acordei me sentindo um lobo. Mas o boleto dizia humano.”

Você acorda. Sol lá fora. Segunda-feira. Toma café. O boleto sorri para você. Tenta não surtar. E, de repente, vem aquele pensamento profundo, quase ancestral (ou do animal de poder):

“E se… eu for um lobo preso no corpo de um advogado cômico?”

E foi assim que entrei para o maravilhoso mundo dos therians.

Mas calma. Eu não está louco (pelo menos, não mais do que o cidadão médio brasileiro em 2025).

E se você, meu caro leitor, já pensou isso também, parabéns: você pode estar flertando com a Therianthropia. Ou talvez esteja só cansado da humanidade — o que, sejamos honestos, acontece com qualquer um depois de cinco minutos no grupo dos “coleguinhas de trabalho” ou no almoço de domingo com a família.

E não se preocupe — não estamos sozinhos. A diferença é que alguns já aceitaram. Outros ainda tentam pagar o INSS (mesmo diante de fraudes).

Vamos direto ao ponto: tem gente por aí que acredita ser um lobo. Não no estilo “sou sagitariano com ascendente em pomba-gira”. Não Metaforicamente. Literalmente. Pessoas que, ao olhar no espelho, vêem um ser humano, mas ao olhar pra dentro, sentem pênas, presas ou um rabo imaginário balangando alegre.

Essas criaturas modernas atendem pelo nome de Therians (ou therianthrope), e não, não estão em extinção. Ao contrário: estão online, em grupos, comunidades, fazendo encontros, filosofando sobre suas naturezas não humanas enquanto tomam cappuccino e lidam com boletos. Sim, o lobo interior tem limite no cartão.

O therian pode:

  • sentir comportamentos instintivos incomuns (tipo vontade de correr sem direção após uma reunião);
  • sonhar com uma vida animal (sem escritório, sem impostos, sem notificação no WhatsApp);
  • sentir “shifts”, como se a alma trocasse temporariamente de corpo — o que é poeticamente lindo, até você tentar explicar isso pro RH.

E por mais que a primeira reação seja rir (ou correr), a segunda é inevitável:

“O que está acontecendo com o ser humano?”


O que é um Therian? (E por que você talvez também seja um)

Therians são pessoas que se identificam com animais não humanos, geralmente real e terrestre — não mitológicos, não pokémons, não personagens da Disney. Estamos falando de lobo, veado, coruja, gato, cavalo, e até bicho-preguiça místico. Sim, um bicho-preguiça espiritual – e quase sempre mais evoluído que o vizinho de cima.

Essa identidade pode ser psicológica, espiritual, simbólica ou um pouco de tudo. Às vezes só muita cansada do Homo sapiens.

A maioria relata “shifts” — mudanças na percepção de si – que fariam Jung bater palmas em transe:

  • Mental shift: Pensa como o animal. Seu modo de pensar muda — você não quer mais discutir política, quer cavar buracos no quintal.
  • Phantom shift: Sensação de membros animais. Você sente que tem rabo, garra, asa ou bico — e não, isso não é efeito do cogumelo (calma, chifre não conta aqui, apesar de muito humano sair por aí sentindo esse também).
  • Dream shift: Sonhos nos quais você vive como o animal, caçando ou voando — muito melhor que sonhar com o(a) ex ou que está nu no Exame da OAB.
  • Cameo shift: quando essas sensações ocorrem em você, mas não representam a identidade principal.

Não é fantasia, cosplay, religião ou teatro experimental da Federal.
Não é transtorno, zoofilia, nem febre causada por cogumelo mal lavado.
Não é piada. Pelo menos, não para eles. Para nós, talvez um pouco.

Mas também é sério. Não é brincadeira. É identidade. É um reencontro com algo mais antigo que a palavra “CPF” – e isso molda como ele vê o mundo, se comporta e se entende.

Essas experiências são intensas, íntimas, contínuas e, para quem vive, mais reais do que a fatura do cartão.

Mas em todos os casos, a realidade bate na porta com voz de boleto:

“Legal sua conexão espiritual, mas e o aluguel, irmão?”

A maioria dos therians vive nesse limbo: entre a mata interior e o carnê do financiamento.

É subjetivo, claro — mas autêntico para quem vive.


Não confunda com seu primo furry (ou com o tio do Zap)

Vamos ao glossário do caos pandemônico:

TermoO que éNível de uivo
TherianSe sente um animal real (lobo, águia, gato). 🌕🌕🌕🌕
OtherkinSe sente um ser mitológico (dragão, elfo, fada, unicórnio). 🌕🌕🌕🌕🌕🌕🌕
FurryGosta de representar animais antropomórficos (arte, cosplay, cultura pop). 🎭 + 💻 + 💰
Seu tio do ZapLula, Bolsonaro ou ambos. “Isso é coisa do comunismo”. “Ou da vacina”.📢📢📢📢📢📢📢

Ou seja, se você sente que é um lobo: therian.
Se você sente que é um elfo de Maringá: otherkin.
Se você gosta de se vestir de castor com peitinho usando blazer: furry.
Se acha que o comunismo/capitalismo está na água do filtro: seu tio do Zap.

O que Jung diria? E o xamã do Instagram também.

Carl Jung adoraria esse rolê: ele chamaria de arquétipo animal — o lado instintivo que reprimimos para caber nas máscaras sociais.

A ciência olha e diz: “ok, desde que você não tente morder o entregador.”
A espiritualidade olha e diz: “bem-vindo de volta, irmão loba.”

Já o xamã do Instagram, entre dois goles de gengibirra artesanal, postaria:

“Você está despertando seu totem ancestral. Descubra seu animal de poder com 12x sem juros. Link na bio.” 🐺✨

Tem a explicação sociológica: resposta ao tédio, à opressão da normatividade e ao esvaziamento existencial. Geração esgotada que cansou de pagar conta e agora quer lamber a pata.

Sim, talvez, só talvez… isso tudo seja sobre um vazio existencial.
Um jeito de fugir do contrato social.
Uma tentativa de resgatar a alma que se perdeu entre boletos e batons de LinkedIn.
Um grito primal.
Uma metáfora peluda da angústia humana.
Um uivo engasgado de quem nasceu para correr nas matas, mas vive trancado em cubículos e hashtags.


O mundo perdeu a cabeça ou encontrou outra forma de alma?

Num tempo em que a identidade virou campo de batalha filosófico, terapêutico e ideológico, talvez o therian seja o ser humano dizendo:

“Eu não aguento mais ser gente.”

E há um certo sentido nisso. O mundo humano está insuportável: produtividade tóxica, ansiedade em 4K, cobranças sem fim, invasão alienígena, redes sociais como espelhos distorcidos, e a alma? Bem, a alma está meio esquecida no porão, abraçando um urso de pelúcia.

Os therians talvez sejam a expressão poética (e um pouco desesperada) dessa alma tentando escapar da jaula do CPF, do boleto, do compromisso, da rotina. Uma alma que cansou de ser civilizada e quer correr de tanga na mata simbólica do inconsciente.

Talvez o therianismo seja a última rebelião do espírito contra a cultura do “acorde, trabalhe, pague, durma, repita”. Uma maneira inconsciente de dizer:

“Chega. Eu não sou uma engrenagem. Eu sou um lobo. E não vou ser domado.”


Mas e a essência, meu filho?

Aqui vem o dilema. É reencontro com a natureza ou apenas uma nova fuga bem produzida?

Porque ser animal tem suas vantagens: não exige discurso, não precisa de terapeuta, nem diploma, nem selfie. Mas também não exige consciência. E talvez seja exatamente disso que estamos fugindo.

Talvez os therians não estejam despertando, mas se perdendo em mais uma camada de fantasia da matrix. Uma dissociação elaborada, bem-intencionada, mas ainda assim… fuga da essência (embora fugir da humanidade seja cada vez mais compreensível).

E se, no fundo, for mais uma fuga da dor de ser humano?
Mais uma invenção do ego pra não encarar o próprio vazio?

Porque ser humano dói.
Tem responsabilidade, tem limite, tem solidão, tem espelho.
Ser bicho é mais fácil. Ser símbolo é mais bonito.
Ser qualquer coisa que não seja “eu” parece mais leve.

Mas aí vem a provocação final:

E se o verdadeiro chamado não for uivar…
…mas silenciar?
E se o caminho não for para o lobo, mas para dentro?

Mas quem sou eu pra julgar? Eu mesmo tenho dias em que me sinto um panda tentando atravessar a segunda-feira (até porque nem tenho amante no trabalho), enquanto observo a gazela saltitante da autoestima dos outros pulando alegre no feed do Instagram.


Entre o cômico e o trágico

A reação natural é rir:

“Ah, que loucura, gente achando que é cavalo!”
“Sério que tem gente que se acha pantera?”
“Imagina explicar isso no cartório: nome, CPF, e espécie?”

Mas logo depois, vem o incômodo:

“E se for só mais um tipo de sofrimento que a gente não entende?”
“E se, por trás do uivo, houver só um pedido de socorro?”

Pode parecer engraçado. Mas talvez seja só triste.
Porque o que estamos vendo pode ser o reflexo de uma geração que não sabe mais quem é.
Que perdeu o centro.
Que cansou de ser gente.
E agora se refugia no instinto, na natureza, no lobo mítico que vive livre e não precisa explicar nada pra ninguém.


No fim das contas…

Os therians são um espelho cômico e trágico de nossa condição: seres espirituais, complexos, sensíveis, com boletos vencidos e um grito existencial preso na garganta.

Uns viram coach. Outros fazem ayahuasca. Outros escrevem artigos como este. Tem quem adote bebê reborn, quem pregue a tal da advocacia quântica, quem se declare “mentor jurídico” com seis meses de OAB, quem uive pra lua de madrugada (mas jura que não é cachaça), quem se esconda em panelinha pra fingir que tem prestígio, ou quem compre seguidores só pra parecer que tá bombando. E tem o guru da espiritualidade que fala de luz, mas bloqueia a mãe no WhatsApp. Cada um foge do jeito que consegue.

O que não dá mais é fingir que está tudo bem.

Talvez não devêssemos rir.
Mas também não deveríamos romantizar.
Talvez devêssemos apenas encarar, com honestidade:

Tem algo muito errado com o nosso modo de existir.
E alguns já começaram a uivar.

Mas talvez, só talvez, o caminho não seja virar bicho. Talvez seja suportar ser humano, com tudo o que isso carrega: amor, dor, memória, fome, culpa, poesia, silêncio e vontade de sumir de vez em quando.

E se, em vez de uivar pra lua, a gente aprendesse a escutar a própria sombra.

A alma humana exige:
Presença.
Silêncio.
Encarar o caos de dentro.

E isso… dói muito mais do que uivar.

Conclusão – E se o animal não for fuga… mas lembrança?

Rir disso é fácil (e pode rir, eu também ri).
Difícil é ser zumano, perdido, bombardeado por padrões, e ainda tentar entender por que você se sente mais confortável imitando um lobo do que conversando com humanos.
E talvez não haja nada de errado nisso.

Talvez o therianismo não seja sobre virar animal.
Talvez seja sobre parar de fingir que você é só o que esperam que você seja.

Uma lembrança ancestral do que já fomos — ou do que ainda somos, escondidos atrás de CPF, de ruídos, cobranças, telas, culpa e perfil no Instagram?

Talvez você seja o lobo — ou só esteja tentando lembrar quem era antes do mundo te domesticar.

Talvez seu corpo use calça jeans, mas sua alma ainda caminha descalça na terra molhada.
Talvez a floresta esteja dentro.
Talvez, em vez de um colapso psíquico, você esteja vivendo um chamado.

Chamado pra desacelerar.
Pra ouvir mais a intuição e menos o feed.
Pra lembrar que existe vida além do “respondi seu e-mail, sim.”

E se for isso…
Uive, txai.
Mas uive com consciência.
E depois volte pra pagar os boletos, porque o lobo também precisa de wi-fi.

Porque talvez, só talvez, a cura da humanidade comece no instante em que a gente para de tentar ser máquina…
…e aceita que somos bicho demais pra caber num crachá.

Talvez os therians não sejam loucos. Mas talvez estejam exatamente como todos nós: perdidos, tentando encontrar sentido onde sobrou instinto e faltou espírito.

E quer saber?
Talvez eles tenham razão.
Talvez seja até um sinal de evolução.

O que está acontecendo com o ser humano?
Estamos vendo o fim de uma era?
Talvez.
Ou talvez seja só o uivo coletivo de uma humanidade que não sabe mais como voltar pra casa.


Se tudo isso te parece exagero, caos ou puro escapismo, talvez seja mesmo. Mas não estamos sozinhos nessa era de desconexão vestida de autenticidade. Já falamos por aqui sobre a “Nova Espiritualidade”, onde dopamina e ego se misturam num Wi-Fi instável com Deus, criando gurus sob demanda e revelações com hora marcada. E também já lembramos da história de Mesannie Wilkins — a mulher que decidiu viver antes de morrer — como um sopro de coragem em meio à confusão existencial. No fundo, todos estamos tentando voltar pra casa, mesmo que uns façam isso de capa de lobo, outros de bicicleta, e alguns, com um bebê reborn no colo.


E não se esqueça: Todo sábado, nossa coluna “Escrever para Não Enlouquecer” fala sério — mas só porque o universo exige equilíbrio. Segunda a gente volta com humor para os dias difíceis.

Haux… Txai!

⚡ Neemias Moretti Prudente é escritor, advogado, filósofo, professor e editor-chefe do Factótum Cultural. Se perdeu entre os livros, os filmes, os boletos e os rituais de Ayahuasca. Escreve para não enlouquecer — e às vezes enlouquece para escrever melhor.

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