Escrever Para Não Enlouquecer – Por Neemias

“Quando a alma adoece de tédio, o estômago tenta curá-la com açúcar. O morango do amor é só mais um paliativo gourmet para um mundo que desaprendeu a sentir de verdade.”
Dizem que o brasileiro não desiste nunca. É mentira. Ele só muda o foco. Um dia está protestando contra a corrupção; no outro, está na fila do morango do amor, com o mesmo fervor revolucionário — só que agora com o celular em uma mão e um pix de R$19,90 na outra. O brasileiro não desiste: ele recalibra o paladar para suportar a realidade.
O “morango do amor”, esse novo sacramento nacional, é um fruto inocente soterrado por brigadeiro branco e lacrado numa armadura de açúcar vermelho que parece feita pela Marvel. Um doce que exige técnica de MMA para morder e fé cega para engolir. Virou símbolo de sucesso, de conforto, de “merecimento” — uma espécie de autoajuda em forma de frutinha.
Mas não se engane: o sucesso do morango do amor não está no sabor. Está na simbologia. A nova estética do prazer é crocante, instagramável, melada e superficial como o amor líquido de Bauman com a glicose no talo.
🥊 Classe média versus a realidade
O morango do amor é o novo “foda-se, eu mereço”. Um grito silencioso da classe média em negação. Não temos dinheiro para terapia, nem saúde mental pra mais um ciclo de ayahuasca, mas temos acesso a 250g de morango revestido com brigadeiro e caramelo vitrificado. O brasileiro não tem paz, mas agora tem um docinho que brilha mais que o próprio futuro.
É curioso pensar que o Brasil vive crises políticas, econômicas, existenciais — e, mesmo assim, a única coisa que une esquerda, direita e isentões é a vontade de comer um morango que parece ter sido benzido por Nossa Senhora do Leite Ninho.
Há algo de poético — e trágico — nesse ritual coletivo. Enquanto o país afunda em crises existenciais, as pessoas se aglomeram em filas quilométricas para garantir um “morango de verdade”. Porque, veja bem, “não é qualquer morango”. É o morango gourmet, sagrado, artesanal, provavelmente batizado em leite Ninho e treinado em coach de prosperidade.
💅 Glacê, performance e sobrevivência
Tudo isso revela o que somos: um povo que performa felicidade enquanto desmorona por dentro. Postamos “moranguinhos do amor” como se fossem medalhas de uma guerra silenciosa. Cada mordida é uma pequena anestesia contra a solidão, a ansiedade, o boleto e o cinismo da vida adulta.
E claro, ninguém come o doce sozinho. Seria heresia. O morango do amor exige palco: precisa ser filmado, editado, legendado com frases do tipo “eu me permito”, “autoamor em forma de doce” ou, para os mais espirituais, “gratidão, universo, por esse momento de conexão com meu chakra do pâncreas”.
🧠 Freud explica (e desiste)
Se Freud vivesse hoje, ele diria que o morango do amor é o novo seio materno. Recheado, doce, envolvente — e completamente disfuncional. Um substituto simbólico para o afeto, o orgasmo, o abraço, o aumento de salário, o reconhecimento profissional e até o antidepressivo.
É, no fundo, o doce do vazio.
Ele tapa buracos emocionais com leite condensado e corante alimentício. Um beijo de língua do capitalismo gourmet em plena crise espiritual. É bonito de ver, difícil de mastigar e indigesto na alma. Mas dá like, e isso basta.
Aliás, psicólogos já estudam os efeitos do morango do amor no cérebro. Alguns relatam casos de gente que deu a primeira risada do mês depois de morder um. Outros dizem que o doce ativa memórias afetivas da infância, da vó, da roça, do amor que não veio, e do boletim vermelho no ensino fundamental.
🔥 Conclusão:
Mas não se engane: o morango do amor é também um teste de maturidade emocional. Porque se você dá a primeira mordida e o recheio escorre na roupa, você precisa decidir: vai surtar ou vai aceitar que viver é isso — um brigadeiro no meio do caos?
No final das contas, o “morango do amor” não é só uma sobremesa. É um espelho. Ele nos mostra o quanto estamos dispostos a pagar por uma fantasia doce que dure cinco minutos. E o quanto estamos dispostos a ignorar que, depois da última mordida, a vida segue amarga como sempre — só que agora com cárie.
Então sim, meu amigo: coma seu morango. Mas não se engane. Ele não é o amor. Ele é só mais um jeito de não encarar o buraco que chamamos de segunda-feira.
Moral da história?
Se a vida te der limões, ignore. Pegue um morango, um pouco de açúcar, brigadeiro branco, um maçarico e transforme tudo em esperança caramelizada. Afinal, o Brasil pode não ter estabilidade, mas agora tem sobremesa com propósito.
E o mais curioso é que o “morango do amor” talvez seja só mais uma resposta desesperada à pergunta que ninguém ousa fazer em voz alta: o que estamos nos tornando? Porque, veja, vivemos numa época em que pessoas se identificam como lobos presos em corpos humanos — como mostrei em “Therians: Animais Presos em Gente, ou Almas que se Esqueceram de Ser?” — e outras fogem para ilhas desertas achando que vão encontrar a paz, mas descobrem que o inferno sempre viaja na bagagem — como em “Floreana: O Paraíso que Revelou o Inferno Interior”. No fundo, seja virando animal, fugindo para uma ilha ou mordendo um morango com casca de vidro e recheio de infância perdida, estamos todos tentando a mesma coisa: esquecer por cinco minutos que não sabemos mais quem somos. O morango do amor é só o último disfarce do vazio moderno — e, ironicamente, o mais fotogênico de todos.
E não se esqueça: Todo sábado, nossa coluna “Escrever para Não Enlouquecer” fala sério — mas só porque o universo exige equilíbrio. Segunda a gente volta com humor para os dias difíceis.

⚡ Neemias Moretti Prudente é escritor, advogado, filósofo, professor e editor-chefe do Factótum Cultural. Se perdeu entre os livros, os filmes, os boletos e os rituais de Ayahuasca. Escreve para não enlouquecer — e às vezes enlouquece para escrever melhor.






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