Escrever Para Não Enlouquecer – Por Neemias

Às vezes, é preciso que algo em nós quebre para que a luz que esquecemos comece, enfim, a brilhar de novo.
Em algum momento da vida, todos nós nos esquecemos de quem somos. Nos cobrimos de medos, crenças, valores, vergonhas, traumas e máscaras sociais. Enterramos nossa luz sob camadas de barro para nos proteger — da rejeição, da violência, do abandono. Com o tempo, esse barro endurece… e nos confundimos com ele.
A história do Buda de Ouro, descoberta por acaso na Tailândia em 1955, é um lembrete simbólico de que, mesmo sob as camadas mais densas de dor e sofrimento, há algo precioso dentro de nós esperando para ser revelado.
A história real
Durante uma invasão ao antigo Sião, por volta do século XVIII, monges, temendo que a estátua fosse saqueada ou destruída, cobriram o Buda com argila e gesso, disfarçando seu verdadeiro valor para protegê-lo.
A estátua original era de ouro maciço, com mais de 5 toneladas, mas passou despercebida por cerca de 200 anos, tida como uma simples imagem de barro.
Um dia, ao tentar transportá-la para um novo templo em Bangkok, a estátua caiu e rachou. Pela fissura, um brilho surgiu. Aos poucos, os monges removeram o revestimento e revelaram o que estava oculto: o Buda de Ouro — inteiro, intacto, brilhando por baixo da armadura de barro.
Uma metáfora de alma
Essa história não é apenas arqueológica. É psicológica, espiritual, existencial.
Porque nós somos como o Buda de Ouro.
Quando crianças, viemos ao mundo com brilho nos olhos, com essência pura, com alma inteira. Mas a vida acontece — a violência, o medo, o trauma, a crítica, o abandono, a rejeição … e até os boletos. Para sobreviver, criamos camadas: comportamentos, máscaras, armaduras, identidades, vícios, cascas.
Esquecemos o ouro.
Esquecemos que somos feitos de luz.
Mas a verdade é: o ouro não se perde. Apenas se esconde.
E, às vezes, é preciso uma queda. Uma perda. Um colapso.
É ali, na fenda da dor, que a luz escapa.
É ali que começa a revelação.
Todos carregamos um tesouro
Essa história nos lembra que mesmo o mais ferido dos seres humanos — aquele coberto de culpas, derrotas ou vícios — carrega dentro de si uma centelha intacta.
- Um vício pode esconder uma sensibilidade imensa.
- Uma raiva pode ocultar um coração ferido querendo amar.
- Um ego inflado pode ser apenas uma armadura de alguém que tem medo de não ser suficiente.
Como diz a sabedoria sufi:
“Não olhe para a lama que cobre a lâmpada, mas para a luz que ainda brilha por dentro.”
O caminho de volta
Redescobrir o Buda de Ouro dentro de nós é um processo. Às vezes lento, muitas vezes doloroso. Envolve tirar camada por camada. Envolve olhar para a tristeza como hóspede, como nos ensina Rumi. Envolve paciência, coragem e compaixão.
Mas também envolve beleza.
Porque não há nada mais belo do que um ser humano reencontrando a si mesmo. A vida é a arte do reencontro com nós mesmos.
Finalizando
Se hoje você sente que se perdeu, que está coberto de barro, que não é mais quem era… respire.
Você não perdeu o que é.
Você apenas esqueceu.
E toda dor pode ser um convite. Toda rachadura, uma oportunidade.
O ouro ainda está aí. Dentro. Esperando você se lembrar.
Essa jornada de reencontro com o Buda interior nos lembra do artigo Uma Jornada Épica Sobre a Parábola do Filho Pródigo, que, após se perder em terras distantes, descobre que o verdadeiro lar nunca deixou de existir — apenas ficou esquecido sob o peso das escolhas e da dor. Também nos faz pensar nos homens que, em silêncio, carregam suas guerras internas sem saber como pedir ajuda. Como dissemos em “Junho é o Mês da Saúde Mental do Homem — saber até sabem, encarar que é bom, nada” – talvez esteja na hora de olhar para dentro e remover, com coragem, o barro que encobre a própria alma. Porque, no fundo, todos queremos voltar para casa. E talvez o caminho de volta comece agora.
Se em algum momento da sua jornada o barro pesar e você esquecer que há ouro aí dentro, lembra: eu também já me esqueci. E se precisar de um iniciado, tô aqui. Haux!
Essa história do Buda encoberto por barro lembra muito outro símbolo precioso: o do livro O Cavaleiro Preso na Armadura, de Robert Fisher. Nele, um homem que vestiu sua armadura para se proteger da dor, do julgamento e da rejeição acaba se esquecendo de como tirá-la. Aquilo que um dia o defendeu, agora o sufoca. Assim como o Buda permaneceu escondido por séculos, o cavaleiro também precisou enfrentar uma jornada de autoconhecimento para romper sua carapaça e reencontrar sua essência. Se esse tema tocou algo em você, vale muito a leitura desse pequeno e profundo livro — um verdadeiro mapa simbólico de retorno a si.
E não se esqueça: Todo sábado, nossa coluna “Escrever para Não Enlouquecer” fala sério — mas só porque o universo exige equilíbrio. Segunda a gente volta com humor para os dias difíceis.

⚡ Neemias Moretti Prudente é escritor, advogado, filósofo, professor e editor-chefe do Factótum Cultural.





