por Charles Santiago e Libiane Orth

Provocado por uma amistosa leitura, moça das boas, após o último texto publicado, aqui, na factótum cultural, projeto de meu amigo Neemias Prudente, a cabrocha, por meio de uma mensagem de texto, impugnava-me: o que dizer do matrimônio? A vida rotinizada da monogamia?
Decerto que, a querela, seguramente não era no sentido literal, religioso, mas ficcional, ou, melhor do que isso, no sentido crítico: um grito para se libertar do enfado matrimonial, prisioneira por anos a fio.
Para responder a problematização, busquei auxílio de uma ilustre companheira, escritora versada em poesia, filosofia e conhecedora do mundo literário para ajudar-me no dilemático problema, mais do que isso, ajuizar comigo um caminho: o que dizer para aquela que suportava o peso do inferno conjugal?
Como se trata de uma consorte de farra, rapariga que vive o melhor dos mundos, o boteco, moça de alma livre, nos apropriamos de algumas garrafas de vinho e deixamo-nos conduzir pela voz nordestina, de versos mais profundos, do poeta mais arretado, o velho e bom Belchior, aos pés do Cristo, no alto da urbe de União da Vitória, cidade que tomamos como paragem.
No alto, com a cidade aos nossos pés, toda iluminada, cortada por um rio caudaloso, o velho Iguaçu, já pelas tantas, entre uma taça e outra de vinho, atentos às estrelas que cintilavam o céu enluarado de União, Belchior, como num ato de devaneio, cantarolava poeticamente: “meu bem, o meu lugar é onde você quer que ele seja, não quero o que a cabeça pensa, eu quero o que a alma deseja”.
Nesse exato momento, impactados pelos versos nordestinos, fitamos um ao outro, com risos largos, olhares flamejantes, no exato momento, como numa epifania, encontrávamos parte da resposta, ou, na melhor das hipóteses, um indicativo para pensarmos entorpecidamente sobre o problema: que desgraça é o matrimônio.
Entretanto, é preciso dizer, encantado com os seus olhos verdes, lumes brilhantes e misteriosos, fui tomado por um silêncio que emudecia minhas emoções, na verdade, transportava-me para outros mundos, lugares mais ousados e libidinosos: contemplá-la na sua pureza e mistério, beber de sua formosura, sentir seu corpo nu.
Ela, moça arretada, para não dizer ousada, percebendo um possibilidade de chamego, aclarado pelo Cristo que nos assistia, mesmo inerte, mas reluzente, versava com um jeito afável e afoito:
– “É isso, o casamento é um encontro em que a alma, pressionada pela cultura monogâmica, faz o desejo do amado, é prisioneira de um mundo a dois, em que corpos são condenados a rotinização de vidas vazias, fugazes…”.
Eu, por um tempo, cativo de sua beleza, encantado com o seu corpo gostoso, só ouvia o seu sotaque melódico, não ajuizava qualquer pensamento.
A beleza ali materializada, como quem já soubesse de toda resposta, desenvolvia o pensamento com uma voz poética:
– “Mas a cabeça é o coração, a capacidade de amar abertamente, viver a paixão ou as paixões e ser, momentaneamente, livres, sonhadores, profanos”.
Ah, gente! Depois dessa reflexão, mesmo embriagado com sua beleza e ousadia, eu pedia detalhes da prosa que, no momento, parecia indiscreta, mas com muito sentido.
Todavia, antes mesmo de ouvir sua resposta, que desenvolvesse sua tese, é preciso que eu considere o lugar em que nos encontrávamos:
Estávamos debruçados em uma janela, movimentados por uma brisa que agitava rapidamente as folhas secas em nosso entorno, como também, esvoaçava os seus lindos cabelos.
Por alguns estantes, encantados com a cena, tomados de um sentimento que parecia se locupletar, aquele de nos entregar aos ardentes desejos libertinos, uma imagem não saia de nossas cacholas: corpos nus a dançar um tango, um forró, já que estávamos sozinhos e protegidos pelo Cristo que, de certo modo, abençoava a cena e defendia nossas profanações. Mas, para nossa infelicidade, não efetivamos nada, deixamos ao acaso do destino, por hora, fora somente imaginação de amantes ficcionais.
Tudo isso porque, a casa sem luz, recortada por portas e janelas, era um bom ambiente para que coisas chameguentas acontecessem, isto é, que os sonhos e desejos se materializassem, ganhassem formas, já que não se tratava de uma amiga comum, pelo contrário, alguém que desde outrora tem despertado uma paixão platônica, mais do que isso, um avexado caso sexual.
Decerto que não havia, por parte dela, qualquer preconceito, ah não, ela estava livre, liberta de si mesma, disposta a conhecer-se melhor, entregando-se aos devaneios loucos e insanos de uma grande paixão, aquela que alimenta os sonhos dionisíacos.
Pois bem, após a descrição do lugar em que nos encontrávamos, ela, ainda com os cabelos esvoaçados, com os olhos brilhando e o riso largo, tomada de um charme incomum, desenvolveu sobre minha questão:
– pense numa janela. Um lugar, quase sempre pequeno, mas com grandes possibilidades. Ela é uma passagem, ou melhor, uma perspectiva que se encontra como abertura, aventura para grandes paixões quixotescas….
Confuso, mas animado com minha amante da filósofa, esbugalhava os olhos, acompanhava os passos de seu raciocínio. Ela, toda imponderada, com bastante maestria versava chamegosamente:
– O casamento é isso, uma casa com portas e janelas. Os casais usam as portas. As janelas são somente expectativas para grandes paixões. Elas não são usadas como passagem, mas sinalizam oportunidades para aventuras, paixões, memórias, coisas errantes…
Impactado com o que acabara de ouvir, corroborando com a tese de minha amante ficcional, relembrava os versos de Belchior, “esse jeito de deixar sempre de lado a certeza e arriscar tudo de novo com paixão. Andar caminho errado pela simples forma de viver”.
Entendi, com a metáfora da janela, tese de minha amiga, que não há problema com casamento monogâmico. É preciso paixão, independente da relação a dois, a três ou mais. É lacônico largar mão das certezas, andar caminho errado, viver loucamente amores e paixões. Por isso, ainda de acordo com o nosso poeta, “mas quando você me amar, me abrace e me beije bem devagar, que é para eu ter tempo, tempo de me apaixonar”. Amores não são protocolos. Os beijos não são saudações. É preciso, cotidianamente, apaixonar-se quentemente para que a janela seja somente uma possibilidade, nunca uma passagem, mas um caminho sempre aberto para vencer rotinas.
Ou, de acordo com minha interlocutora, tomando de empréstimo a poesia de Belchior: – Se vamos “viver a divina comédia humana, onde nada é eterno”, que a janela tenha seu protagonismo, sua força e razão de ser na rotinização da vida dos homens e mulheres fracos.
-O vento, aquele que faz dançar as folhas secas, é o mesmo que varre uma cidade. Permita que seu sopro, possa, na vida de cada pessoa, renovar os anseios dos amores e paixões para que possam viver sem medo, sem culpa aventurando-se, seja pela porta ou pela janela, mas que façamos valer a profecia de Belchior, a vida “já é outra viagem, e o meu coração selvagem tem essa pressa de viver”, como se o presente fosse o nosso eterno momento: a vida como pode ser…..

Por
Charles Santiago, autor de Filosofia de Boteco
&
Libiane Orth, escritora e colunista do Factótum Cultural
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