Por Pâmela Bueno Costa

“O diabo é a gente”.
“Mas eu não estou interessado
Em nenhuma teoria”
(Ao som de Belchior)
Soscrevo, como diria Manuel Bandeira, pensamentos e devaneios soltos. É novembro, penúltimo mês de 2020, essas linhas são um exercício de alívio imediato. E, no movimento de Um copo de cólera: explodimos. Este ano, nos mostrou que as coisas podem ficar fora do controle.
Em ritmo acelerado, na voz de Chico César:
“Se números frios não tocam a gente
Espero que nomes possam tocar”.
Um ano fúnebre, o dia que a terra parou. Pessoas que partiram, que não sabemos seus nomes, os sonhos, os amores que foram interrompidos, é preciso salientar e compreendemos que durante a história muitas epidemias aconteceram. No entanto, vimos nesse projeto de governo, falando a nível de Brasil, para nos localizarmos em nosso chão – uma necropolítica. Nosso representante do poder executivo não ligou para a catástrofe do COVID-19. Aliás, afirmou, inúmeras vezes, que era apenas uma gripezinha: “Algumas pessoas vão morrer, e, daí?”. O que vemos? “Vemos nesse homem o exercício da necropolítica, uma decisão de morte” (KRENAK, 2020, p. 80).
Palavras são navalhas…Um grito. Revolta e lamento.
“E eu quero é que esse canto torto
Feito faca, corte a carne de vocês”.
À palo seco eu pergunto, a você caro leitor: “esse canto feito faca cortou sua carne?”. Em março interrompemos nossas atividades escolares. O que inicialmente achamos que seria apenas alguns dias. Estamos (professores) há mais de oito meses em trabalho remoto, e isso tem uma dimensão muito expressiva, o home-office possui uma grande sobrecarga de trabalho. Ser professor é trabalhar com gente, com contato, olhos nos olhos, é afeto, é partilha é uma construção coletiva em sala de aula. Algo que no ambiente virtual fica tudo muito técnico, quase sem vida. No entanto, nos adaptamos. Salve o classroom e o meet! Perdemos nossa intimidade, nossa casa tornou-se uma extensão da escola. Aprendemos a lidar com algumas inseguranças, falta de preparo, equipamentos, contamos com a circunstâncias, por exemplo, algo que não está sob nosso controle – como a internet funcionar. Muitos obstáculos enfrentamos e ainda estão sendo superados. Por isso é Importante frisar a discrepância de desigualdades, a luta dos estudantes diariamente sem acesso à internet, enfrentando as crises de ansiedades, depressão, do mesmo modo, e, intensidades diferentes os professores. Sem falar em outros problemas que não cabe apontarmos aqui. Sofremos e estamos sofrendo de uma maneira sem igual.
Uma pausa. Respiro.
Amar e mudar as coisas …
Uma experiência dolorosa 2020 nos proporciona. Comecei essa escrita, com a música de Belchior: alucinação. Qual é nossa alucinação? Nosso delírio, a nossa alucinação é suportar o dia a dia. Entre choros e desesperanças, caminhamos sobrevivendo esse mar de tristezas que esse ano propiciou. Sobreviveremos? Ano passado eu morri, mas esse ano…
Sobreviver a essa tragédia mundial, tem sido a meta. Belchior grande poeta que nos inspira a pensar: “Um preto, um pobre, uma estudante, uma mulher sozinha”. Cenas recentes, nos mostram como a luta não pode parar, ela nunca cessa. Seja a luta pelos direitos da mulher, do negro, dos povos originários. Uma mulher sozinha, cenas de abuso de poder, de uma violência e humilhação presenciamos nos primeiros dias de novembro. Uma mulher lutando por justiça, um sofrimento que vem se alastrando, que nos faz pensar sobre o quanto a misoginia, o machismo, a sociedade patriarcal e um falso moralismo matam diariamente e abusam das mulheres. Ainda no século XXI temos que defender o óbvio. Não estamos sozinhas e em união seguimos por amor nas e às causas perdidas. Amar e mudar as coisas, me pergunto, e pergunto a você: como é possível amar o outro que nos violenta? Tiram nossos direitos, abusam e estupram nosso corpo, nossa alma e a nossa dignidade? O amor vem agonizando… Apesar de tudo, acreditamos na bondade humana?
Outra pausa. Outro canto torto:
“Tudo bem, seja o que for
Seja por amor às causas perdidas”.
São tempos difíceis para os sonhadores, tempos sombrios, que é necessário defender as causas perdidas. Lutando com os dragões. Seguimos pensando, como o cavaleiro errante: “Mudar o mundo meu amigo Sancho não é loucura, não é utopia, é justiça”. Nesse movimento, travessia: o Diabo, “vige, mas não rege…” (ROSA, 2001, p. 110). Riobaldo diz:
– “O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenuncio. Essas melancolias… Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo” (ROSA, 2001, p. 26).
Um grito:
“Mas ando mesmo descontente
Desesperadamente, eu grito em português”.
Viver é uma espécie de loucura. E o diabo vige dentro do homem? Um dilema nas Veredas de Rosa. Que paramos para observar o mundo real, o qual nos mostra que diabo vige dentro dos homens. Em um rasgar-se e remendar-se. Seguimos, e assim : “Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo no meio do fel desespero. Ao que, este mundo é muito misturado…”(ROSA, 2001, p. 237). Riobaldo nos ensina um aprender a viver: “O sertão está em toda parte, é quando menos se espera”. O sertão mora dentro da gente. E o diabo não há! Existe é o homem humano.
E, nas palavras do latino americano, na divina comédia humana: “Enquanto houver espaço, corpo e tempo e algum modo de dizer não. Eu canto”: com o verso da poeta, à flor da pele, nas palavras navalhas, o canto torto, da amiga das travessias, Bruna Domingues:
TER-GI-VER-SAR
Roda. Redemoinho!
O diabo na gente, a gente na rua
Nó. Tergiversante, eu-caminho
Percorro. Tergiversamente nua
Nua. Rodante, eu-caminho
O diabo na pele: ardência itinerante
Caminho-eu. Brasa. Redemoinho!
Rapinando rima, eu-diabo – estúpida! Tergiversante
Ensaio um sentido. Quente
Redemoiho-me. (Ah! Essas voltas!)
Teu nada veste (me). O diabo é a gente
No fundo, eu-sertão, cultivo consciente
Embrenho-me, rapino-me, tergiverso. Teu nada.
O diabo é a gente!
KRENAK, A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

Pâmela Bueno Costa, professora de filosofia na rede estadual e particular de ensino – SC. Graduada em Filosofia. Pós-graduada em Ensino da Filosofia. Mestre em Ensino da Filosofia PROF-FILO. Cursando terceiro ano de Letras: Português/Espanhol (UNESPAR). Ilustradora amadora e aprendiz de aquarela. Colunista do Factótum Cultural.
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