“Só existem dois mercados em que o consumidor é chamado de usuário:
no tráfico de drogas e nas redes sociais.”

O Dilema das Redes (2020)

I. A Era da Exposição Compulsória

Nunca fomos tão visíveis — e nunca estivemos tão perdidos.
Vivemos num tempo em que o afeto foi substituído por curtidas, a validação virou moeda, e a subjetividade se transformou em produto. O que antes era intimidade agora é conteúdo. O que era silêncio virou algoritmo.

O corpo é mostrado como cartão de visitas.
A felicidade é editada como peça publicitária.
A espiritualidade é performada como espetáculo.

E por trás disso tudo, um eco silencioso:

ninguém sabe mais quem realmente é.


II. A Dor de Não Ter Sido Visto

A superexposição não nasce da vaidade — nasce da ferida.

A criança que não foi elogiada o suficiente,
que não foi validada,
que não foi escolhida,
cresce adulta tentando existir na tela que nunca se apaga.

Curtidas viram bênçãos modernas.
Seguidores viram amuletos contra a sensação de insignificância.

Mas por mais que se poste, por mais que se apareça… o vazio continua.

A alma percebe quando não é ela quem está vivendo —
mas sim uma persona cuidadosamente iluminada.


III. A Performatividade do Eu

Não importa quem somos — importa quem parecemos ser.

Somos treinados para construir versões de nós mesmos:

  • mais felizes,
  • mais bonitas,
  • mais espirituais,
  • mais bem-sucedidas.

E nessa tentativa de parecer, paramos de ser.

O problema não é postar.
O problema é depender disso para se sentir vivo.

É confundir visibilidade com valor,
alcance com afetos,
seguidores com relações reais.


IV. A Espiritualidade de Vitrine

O sagrado também virou conteúdo.

Meditação filmada.
Ayahuasca com ring light.
Yoga com filtro.
Revelação espiritual no stories.

Não se reza mais — se posta.
Não se encontra Deus — se marca Deus na bio.

A experiência transcendental, que antes pedia silêncio, agora exige engajamento.

E assim a espiritualidade deixa de ser caminho,
para virar performance.


V. O Corpo Como Moeda

O algoritmo sabe o que deseja: pele, curvas, músculos, sexualidade.

O corpo vira capital.
E muitos passam a negociar a própria carne por aprovação.

Não se trata de sensualidade —
mas da tentativa desesperada de dizer ao mundo:

“Eu também sou desejável.”

É a mesma ferida infantil pedindo:

“Me ama, por favor.”

Curiosidade: Estudos conduzidos pela Universidade de Brunel, no Reino Unido, analisaram centenas de perfis em redes sociais e observaram que pessoas que compartilham com frequência suas rotinas de treino e academia tendem a apresentar níveis mais elevados de traços narcisistas. Segundo os pesquisadores, essas postagens costumam estar ligadas à busca por validação externa e aprovação social, utilizando curtidas, comentários e compartilhamentos como forma de reforçar a autoestima. O estudo destaca que o corpo passa a funcionar como um indicador de status dentro da cultura fitness, simbolizando disciplina, força e dedicação. Embora, para muitos, essa exposição atue como motivação saudável, para outros pode revelar inseguranças emocionais e necessidades afetivas não resolvidas. As interações digitais ativam áreas do cérebro relacionadas ao prazer, criando um ciclo de recompensa que incentiva a exposição constante do corpo. Isso não significa, automaticamente, um problema psicológico, mas sugere que a frequência e a intenção por trás das postagens dizem muito sobre a relação do indivíduo com sua autoimagem e com a necessidade de ser visto.


VI. O Pior Cenário: Narcisismo Hard

Aqui chegamos ao nível mais triste do ego digital:

comprar seguidores.

Sim, comprar.

E pior:

Seguir as pessoas para ganhar um “follow” de volta,
e depois deixar de seguir na surdina,
só para parecer mais importante do que se é.

É o modo estelionato afetivo do ego.
É a vaidade implorando reconhecimento enquanto exala desespero.

Ter 50 mil seguidores e 15 curtidas não é status —
é sintoma.

É ostentar números enquanto se esconde a alma.


VII. A Vaidade da Toga

A advocacia, por si só, já é um palco de egos inflamados.

Selfies no fórum.
Frases de Carnelutti no stories.
Vídeos no elevador da OAB.
Carrosséis com “dicas jurídicas em 60 segundos”.
Postagens performáticas de “vida de advogado”.

O problema não é a advocacia —
é usá-la como muleta existencial.

A toga vira armadura.
O currículo vira escudo.
A oratória vira máscara.

E confesso, txai, confesso:

até eu me perco.

Às vezes, o Neemias advogado se esconde atrás de um feed organizado.
Às vezes, o Neemias escritor se alimenta de curtidas como quem toma analgésico.
Às vezes, o ego quer aplausos, quando a alma só quer silêncio.

E é por isso que, apesar de tudo,
eu caminho — devagar, tropeçando —
para me tornar o Txai Ninguém.

Não um nome.
Não uma marca.
Não uma persona.

Mas um espaço vazio onde Deus possa respirar.


VIII. O Vazio Como Convite

O vazio que sentimos não é falha — é chamado.

É a alma dizendo:

“Pare de viver para ser visto.
Volte a viver para ser.”

Quando o ego cala,
quando a persona cai,
quando o avatar morre,

o eu verdadeiro finalmente aparece.

E esse eu não precisa de seguidores.
Não precisa de curtidas.
Não precisa de aplausos.

Ele só precisa de presença.


IX. A Vida Que Não Cabe em Stories

A vida mais bonita talvez seja aquela que ninguém vê.
O amor mais profundo talvez não seja postado.
A espiritualidade mais real talvez nem tenha wi-fi.

Talvez a verdadeira revolução digital seja essa:

desaparecer um pouco para finalmente existir.

📖 Não deixe de ler nosso conteúdo anterior:

E não se esqueça: Sábado, nossa coluna “Escrever para Não Enlouquecer” fala sério — mas só porque o universo exige equilíbrio. Segunda a gente volta com humor para os dias difíceis.

Neemias Moretti Prudente é escritor, advogado, filósofo, professor, místico, cômico e editor-chefe do Factótum Cultural.

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