Eu caminhava por entre as trincheiras do mundo moderno — que, pra ser sincero, não são feitas de barro, mas de boleto, culpa e café frio — quando tropecei num anjo.

Sim, um anjo.
E não desses que estampam cartão de Natal, todo iluminado, com cara de quem nunca se atrasou pra vida.
Esse estava caído. E feio. E meio irritado, como alguém que caiu do céu porque escorregou numa decisão ruim.

A primeira coisa que pensei foi:
“Pronto. Até o divino anda tendo burnout.”

A segunda foi:
“Talvez eu devesse fingir que não vi. Vai que é cilada.”

Mas o anjo abriu um olho — só um — e perguntou com voz rouca:

— Você também caiu?

Engoli seco. A vida inteira passou pela minha cabeça: meus erros, meus sonhos, minhas tentativas de ser luz enquanto me desequilibrava nas próprias sombras.

— Não… — respondi. — Eu… apenas me distraí do caminho.

Ele riu. Um riso triste, desses que já viram o fim de muitos mundos.

— Todos caíram, Txayn. A diferença é que alguns acham que vieram por escolha.

Senti o golpe metafísico na nuca.

Me sentei ao lado dele. O chão estava frio. A alma também.

— E o que faço agora? — perguntei, fingindo que sabia conversar com anjos acidentados.

O anjo me olhou como quem avalia um aluno que tenta trapacear na prova de autoconhecimento.

— Levanta primeiro. Depois decide se escala de volta ou se aprende a caminhar aqui embaixo.

E aí fez algo que eu não esperava:
Me estendeu a asa.

Não inteira — só um pedaço, meio torto, meio sujo.
Mas era suficiente pra eu entender:
até o divino, quando cai, ainda consegue ajudar alguém a levantar.

Fiquei ali, observando aquela criatura celeste tentando recompor a respiração, enquanto eu tentava recompor a dignidade.

E percebi que talvez o mundo seja uma grande trincheira, sim —
só que cheia de anjos caídos e humanos levantando.
Uns puxam os outros, mesmo sem entender nada, mesmo sem estar prontos.

Afinal, ninguém está pronto.
Nem os anjos.

E antes de desaparecer na névoa entre os mundos, ele me disse:

— Volta pro caminho, Txayn. Mas agora… sabendo que todo ser luminoso já tropeçou. Inclusive você.

Depois disso, acordei.
Ou talvez tenha sido ele que acordou.
A gente nunca sabe quem está dormindo em qual realidade.

Só sei que, desde então, quando tropeço na vida, não penso mais que caí.
Penso:
“Ah… encontrei outro pedaço da asa que perdi.”

E continuo.

Porque esse é o segredo:
ninguém sobe sem antes aprender a caminhar com a própria queda.

Esta crônica nasceu do eco distante de um livro que rasga o céu e a alma: Angel Down: A Novel, de Daniel Kraus. Enquanto eu caminhava pelas páginas sombrias daquela história — cheias de anjos feridos, homens perdidos e redenções improváveis — algo em mim reconheceu a queda como velha amiga. E assim, entre a lama das trincheiras e os sussurros do sagrado, brotou este pequeno conto. Uma lembrança de que até as alturas tropeçam, e que toda queda é apenas o começo de um voo que ainda não lembramos como fazer.

Não deixe de ler a história anterior do Txayn:

🧙‍♂️ Txayn

🌿 Originário, viajante entre mundos. Guardião de histórias e símbolos.
🌓 Caminho entre luz e sombra, onde tudo se mistura.
🌀 Sigo rastros invisíveis e deixo perguntas — nunca respostas.
🦎 Cada história é uma lanterna acesa no escuro.

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