Por Livros & Grimórios

Há livros que denunciam.
E há livros que testemunham, como se o autor carregasse consigo a responsabilidade de contar a verdade de vidas que o mundo já decidiu apagar.
There Is No Place for Us, de Brian Goldstone, pertence ao segundo grupo — um trabalho monumental de jornalismo etnográfico que escancara a realidade dos working homeless, pessoas que trabalham incansavelmente… e ainda assim não têm onde morar.
Goldstone não escreve de longe.
Ele entra nos carros onde famílias dormem, caminha pelas calçadas que viram quartos, acompanha despedidas traumáticas e sonhos que nunca chegam a nascer.
Este não é um livro sobre “sem-teto”.
É um livro sobre trabalhadores invisíveis, sobre a falência moral de um país que abandonou seus próprios alicerces.
I. O colapso do conto de fadas americano
Goldstone abre o livro desmontando, com precisão matemática, a mentira mais bem contada dos Estados Unidos:
“Se você trabalhar duro, vencerá.”
O que ele mostra é outra coisa:
Mesmo trabalhando, milhões afundam.
O autor acompanha famílias reais — garçons, motoristas de app, cuidadores, funcionários públicos, trabalhadores de serviços — que, apesar de empregos estáveis, vivem:
- em carros abarrotados,
- em motéis decadentes,
- em abrigos temporários,
- em barracas improvisadas,
- em trailers ilegais,
- ou em estacionamentos 24h.
São mães, pais, idosos, trabalhadores essenciais — aqueles que sustentam as cidades, mas não podem morar nelas.
O “American Dream” não foi apenas fracassado — foi revogado.
II. As histórias que Goldstone traz à luz
O autor acompanha, por meses e anos, famílias inteiras.
Entre elas, uma das mais marcantes:
Danielle e seus filhos
Trabalhadora da área de cuidados, Danielle tem dois empregos.
Ainda assim, sua renda não cobre um aluguel em Atlanta.
Ela dorme com as crianças no carro, improvisando proteção contra o frio e contra o medo.
Trabalha cuidando de idosos — enquanto ninguém cuida dela.
Andre, motorista de entregas
Entregava comida para pessoas que viviam em apartamentos luxuosos,
mas comia restos frios dentro de seu carro, estacionado atrás de um supermercado.
Alyssa, funcionária pública
Mesmo com um emprego do governo, é expulsa do apartamento quando o aluguel aumenta abruptamente (rent surge).
Passa a viver em motéis por meses, gastando mais do que gastaria em um aluguel — mas sem alternativa.
Essas histórias não são exceções.
São um padrão nacional.
III. As causas estruturais que destroem vidas
Goldstone expõe, com clareza cirúrgica, as engrenagens do colapso habitacional:
1. Aluguéis insustentáveis
Em muitas cidades, o valor do aluguel ultrapassa 80% da renda de um trabalhador comum.
2. Estagnação salarial
Enquanto os preços sobem como foguetes, os salários rastejam como tartarugas.
3. Gentrificação e políticas urbanas violentas
Áreas inteiras são remodeladas para ricos;
pobres são empurrados para as margens — ou para a rua.
4. Criminalização da pobreza
Ser pobre vira crime.
Ser sem-teto vira delito.
Ser trabalhador sem casa vira “fracasso”.
5. Sistema que lucra com a precariedade
Goldstone mostra como corporações, fundos imobiliários e governos ganham milhões com:
- motéis long-stay,
- programas emergenciais mal geridos,
- despejos em massa,
- aumento planejado de aluguéis,
- remoções forçadas.
A pobreza virou indústria.
IV. O impacto psicológico: viver sem lugar é perder o nome
Nenhuma infraestrutura simbólica sobrevive à falta de chão.
Goldstone descreve a erosão que acontece quando uma pessoa não tem onde existir:
- a identidade se dissolve;
- o corpo nunca relaxa;
- a mente entra em estado de alerta permanente;
- o futuro deixa de ser imaginável;
- a dignidade evapora;
- o ser humano vira sombra.
Jung diria:
“Sem território psíquico, não há Self.”
Goldstone mostra isso na prática: viver sem lugar é deixar de ser alguém.
V. Goldstone como observador e testemunha
A força do livro está na escrita de Goldstone — firme, empática, profundamente humana.
Ele não é um jornalista de gabinete.
Ele vive ao lado das famílias.
Vai a audiências, escolas, estacionamentos, hospitais, igrejas, creches, empregos.
Ele não fala sobre as pessoas.
Ele fala com elas.
E isso faz toda diferença.
O livro tem o peso moral de Evicted, de Matthew Desmond, e a delicadeza humana de Nickel and Dimed, de Barbara Ehrenreich.
Mas vai além: entra nos bastidores emocionais de uma crise que deixou de ser crise e virou sistema.
VI. Nossa leitura filosófica
Aqui, fi, é onde o Livros & Grimórios abre o peito:
There Is No Place for Us não é apenas sociologia.
É um espelho espiritual.
Goldstone revela um país onde:
- o capitalismo come seus próprios filhos,
- a dignidade virou artigo de luxo,
- o trabalhador essencial tornou-se descartável,
- o lar deixou de ser direito e virou privilégio,
- o cuidado é unilateral: cuidamos dos ricos, ninguém cuida de nós.
Este livro é um texto sagrado às avessas:
uma escritura do abandono.
É impossível lê-lo e sair igual.
Porque ele força você a encarar a pergunta que define qualquer civilização:
Quem merece ter um lugar no mundo?
E quem decidiu isso?
A resposta — ou a falta dela — revela nossa falência moral coletiva.
Observação: Embora o cenário seja americano, a lógica é global. Brasil? Europa?
Ásia? O mesmo fenômeno se repete, com sotaques diferentes.
Já escrevemos sobre isso em: Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua: Uma Homenagem e um Chamado à Consciência
VII. Conclusão — o livro que deveria ser proibido para quem lucra com o sofrimento
There Is No Place for Us é o tipo de livro que incomoda governos, prefeitos, incorporadoras, fundos imobiliários e todos que vivem da desigualdade.
E é justamente por isso que ele é essencial.
É um documento histórico, um alerta, um lamento e um ato de resistência.
Goldstone honra a vida dos esquecidos.
E nos lembra que, em sociedades como as nossas, a pobreza não é acidente —
é projeto.
Este livro deve ser lido com indignação, tristeza e, acima de tudo, responsabilidade.
Porque se não há lugar para “eles”,
então, cedo ou tarde, não haverá lugar para ninguém.
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📚 Cada livro é um feitiço. Se abriu este, talvez queira decifrar também:
✍️ Editores do Factótum Cultural






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