Por Livros & Grimórios

Imagine que sua cabeça é um teatro.
No palco, um narrador tagarela conta a história da sua vida, descrevendo, julgando e interpretando tudo o que acontece.
Mas o truque é este: não existe ninguém ali.
O narrador é uma invenção.
É exatamente isso que o neurocientista Chris Niebauer propõe em A Ilusão do Eu — um dos livros mais lúcidos (e desconcertantes) da psicologia contemporânea.
Misturando neurociência, filosofia oriental e humor, Niebauer convida o leitor a um experimento de consciência: descobrir que o “eu” que pensamos ser é apenas uma ficção bem contada pelo hemisfério esquerdo do cérebro.
O hemisfério esquerdo: o contador de histórias
Para Niebauer, o hemisfério esquerdo do cérebro é como um advogado interno — sempre tentando explicar e justificar tudo.
Ele não suporta o mistério.
Se não sabe o motivo de algo, inventa.
É ele que cria o “eu”, essa história de quem somos, de onde viemos, o que queremos e o que sentimos.
Só que o autor mostra, com base em décadas de estudos sobre pacientes com o cérebro dividido (split-brain), que esse “eu” é pura narrativa.
Quando o hemisfério esquerdo é isolado, o direito continua vendo, sentindo e percebendo — mas sem precisar criar uma história sobre isso.
A mente direita simplesmente é.
E é nesse ponto que Niebauer conecta a ciência moderna às tradições espirituais antigas.
O que o budismo chama de “não-eu” e o que o taoísmo chama de “wu wei” (não ação) são, para ele, expressões diferentes da mesma verdade: a consciência é real, o ego é o truque.
A ponte entre ciência e misticismo
O que torna o livro fascinante é que ele não se contenta em ser científico.
Niebauer brinca com as fronteiras entre laboratório e templo.
Ele cita Alan Watts, o Buda, Lao Tsé e até metáforas zen para explicar processos cerebrais.
E faz isso com ironia e leveza: a ciência, segundo ele, está apenas confirmando o que os místicos intuíram há milênios.
Quando ele diz que o hemisfério esquerdo é um contador de histórias compulsivo, está ecoando os mestres espirituais que falavam da “mente do macaco” — o pensamento incessante que pula de galho em galho, criando identidades e dramas.
Já o hemisfério direito, mais silencioso, intuitivo e integrador, é o que vive o presente — é o observador, a consciência sem nome.
Ou seja, o lado direito é o portal para o “despertar” espiritual, enquanto o esquerdo cria a prisão do ego.
A ilusão do controle
Niebauer vai além da teoria e mostra como o ego é um vício cognitivo.
Ele quer ter razão, quer controlar, quer ser o protagonista.
Mas a vida não obedece aos roteiros do ego.
Ela flui — e é justamente quando paramos de narrar e começamos a observar que algo mágico acontece: a realidade se mostra como ela é, sem legenda.
O autor propõe exercícios simples de autopercepção, semelhantes à meditação mindfulness: observar os pensamentos como nuvens passando.
Ao perceber que não somos o narrador, mas o silêncio que ouve, a estrutura da identidade começa a rachar.
E, quando o “eu” se desfaz, sobra o que sempre esteve ali: presença.
O humor da verdade
O tom do livro é provocador e espirituoso.
Niebauer não se leva a sério — e justamente por isso é convincente.
Ele ri da obsessão ocidental por definir tudo, diagnosticar tudo, nomear tudo.
“Quer saber quem você é?”, pergunta ele.
“Observe o próximo pensamento que surgir — e veja o quanto ele te domina.”
Ele trata o ego como um erro de software, um glitch evolutivo que confundiu o mapa com o território.
O problema não é pensar — é acreditar que o pensamento é você.
Nossa leitura filosófica
Na Coluna Livros & Grimórios, A Ilusão do Eu é mais do que um livro — é um espelho.
Ler Niebauer é assistir ao próprio “eu” se desmontando em tempo real.
Cada frase é uma marretada suave na muralha da identidade.
O autor não nega a individualidade, mas mostra que ela é funcional, não essencial.
O “eu” é um personagem útil para navegar o mundo — mas não é o piloto.
O piloto é o que observa tudo isso acontecer.
É a consciência nua, o espaço onde o filme da vida passa.
Em certo sentido, Niebauer reescreve a máxima de Descartes:
“Não penso, logo existo.”
Conclusão
The Illusion of Self (título original) é uma das obras mais inteligentes do século XXI sobre consciência.
Consegue fazer o que poucos ousam: unir neurociência, espiritualidade e humor sem cair no charlatanismo nem na rigidez acadêmica.
Ao terminar, o leitor percebe que a mente é uma ventríloqua genial — mas a voz que fala dentro dela nunca foi sua.
E a sensação que fica é libertadora:
“Você nunca precisou ser alguém para ser tudo.”
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✍️ Editores do Factótum Cultural






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