“O tempo é o boi que caminha dentro de nós: lento, firme, paciente. E, no seu compasso, até a alma encontra repouso.”

O povo antigo não escrevia tratados de filosofia, mas carregava sabedorias escondidas em frases curtas, como se fossem sementes de eternidade. Uma delas diz:

“Conforme o carro de boi anda, as tralhas se agasalham.”

É apenas um ditado rural? Não. É também um mapa secreto do viver.


O ritmo da vida e o véu da paciência

O carro de boi é lento. Mais lento que nossa pressa, mais sábio que nossa ansiedade. Seus bois caminham firmes, com a serenidade de quem sabe que o destino não depende da correria, mas da constância.

As tralhas sobre ele parecem, no início, um caos: panelas tilintando, roupas voando, cabaças rolando. Mas o tempo do andar é também o tempo do ajustar. Pouco a pouco, o que era barulho vira repouso.

A vida não é diferente. Nossos pensamentos, dores, relações e memórias também balançam dentro de nós. Somos, muitas vezes, um carro de boi desgovernado. Mas o que o ditado nos lembra é que se continuarmos caminhando, mesmo trôpegos, o movimento nos reorganiza.


O caos como parte do despertar

No autoconhecimento, há sempre um primeiro momento de confusão. Quando começamos a olhar para dentro, parece que tudo se desarruma: medos antigos surgem, lembranças reprimidas sacodem, dores esquecidas se misturam.

Mas esse caos não é fracasso — é rito de passagem. É preciso suportar o barulho interno até que, na marcha paciente da consciência, as peças comecem a se encaixar.

Assim como no carro de boi, a alma também precisa balançar para se acomodar em si mesma.


Espiritualidade do tempo

Há quem pense que espiritualidade é iluminação instantânea, como um raio que clareia tudo de uma vez. Mas, na verdade, ela se parece mais com a estrada vermelha do sertão: longa, poeirenta, cheia de balanços.

O boi simboliza o tempo eterno, Deus que caminha dentro de nós. As tralhas são nossas sombras e luzes, memórias e desejos, quedas e esperanças.

E a mensagem é simples: se permanecermos caminhando na direção do Mistério, o próprio caminho nos ensinará a ordem do coração.


A lição para não enlouquecer

No mundo veloz em que vivemos, a ansiedade é o tilintar das panelas. Queremos resolver tudo na pressa: curar feridas, ajeitar relacionamentos, encontrar sentido imediato.

Mas escrever — e viver — é suportar o barulho até que se faça silêncio. É confiar que, mesmo que hoje sejamos confusão, o tempo tem seu jeito de nos alinhar.

Conforme o carro de boi anda, o eu se acomoda. Conforme seguimos, a alma aprende a repousar.


Epílogo

Talvez o ditado seja mais do que uma frase rural: talvez seja uma oração escondida.

Uma lembrança de que a vida tem seu compasso invisível, e que nós, mesmo quando tudo parece estar fora do lugar, estamos sendo levados para a harmonia.

E aqui me permito algo pessoal: quem me ensinou essa frase foi meu velho pai. Dele herdei não apenas histórias, mas também silêncios. Não apenas dureza, mas também sementes de sabedoria.

E talvez eu só tenha entendido porque cresci na roça. Minha infância foi dura: acordava de madrugada, estudava quando dava — manhãs ou noites — e o resto do tempo era trabalho. Trator, capina, lida com gado, roçada, corte de cana, plantio de soja. Havia dias de escritório também: contas, holerites, despesas. Às vezes em uma fazenda, às vezes em outra. Tive infância, sim, mas marcada por trabalho pesado. É por isso que, quando ouço o ditado “conforme o carro de boi anda, as tralhas se agasalham”, não o recebo apenas como uma metáfora, mas como memória viva: eu mesmo fui tralha solta, barulhenta, desajeitada, sacudida na carroça da vida. Mas o tempo, esse boi paciente, foi me colocando no lugar, até encontrar repouso (ou quase).

Até hoje, na continuação da minha própria caminhada — entre dores, quedas, noites longas e recomeços improváveis — percebo que essa lição simples do carro de boi é também o mapa da minha alma.

O carro de boi é a vida.
As tralhas somos nós.
E o caminho é sempre o Mistério.

Se continuo andando, é porque aprendi que, conforme o carro de boi anda, as tralhas — e até o coração — se agasalham.

“Se hoje sua vida é barulho e desalinho, não tema: continue andando. O boi é lento, mas nunca deixa de chegar — e, no ritmo do caminho, sua alma também encontrará repouso.” E se precisar, tô aqui. Haux!


Esse ditado que meu pai me ensinou também dialoga com outras estradas que já percorri aqui na coluna: a grande jornada da A Scania Cósmica dos Txais, onde até o caos do universo encontra sua música, e o chamado de Entre Ezequias e Isaías, que nos lembra da urgência de arrumar a casa interior. Afinal, seja no carro de boi, na Scania ou no templo, a lição é a mesma: a vida pede movimento, paciência e confiança no Mistério que, pouco a pouco, ajeita tudo em seu devido lugar.


E não se esqueça: Todo sábado, nossa coluna “Escrever para Não Enlouquecer” fala sério — mas só porque o universo exige equilíbrio. Segunda a gente volta com humor para os dias difíceis.


Neemias Prudente. Escritor, advogado, filósofo e editor-chefe do Factótum Cultural.

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