“Eu e você também poderíamos estar lá — porque a vida é frágil, e a rua é o espelho cruel da nossa própria vulnerabilidade.”

A linha fina entre o teto e o concreto

Qualquer um pode cair. Eu, você, qualquer pessoa.
A vida é frágil: uma doença, um desemprego, uma separação, uma depressão. A rua está logo ali.

Eu sei porque já estive na beira. O álcool, drogas-Z, ansiedade, a dor, o vazio — a vida me rondou de perto. Se não fosse o Inominado e minha família, talvez hoje eu estivesse deitado em um papelão.

É por isso que, neste 19 de agosto, quando lembramos a População em Situação de Rua, eu não consigo falar de “eles”. Eu só consigo falar de nós.


O massacre que marcou a data

Entre 19 e 22 de agosto de 2004, na Praça da Sé, em São Paulo, 15 pessoas foram atacadas enquanto dormiam. Sete morreram.
Esse horror se tornou símbolo, e em 2025 o Brasil finalmente reconheceu o dia, sancionando a Lei nº 15.187, que instituiu o Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua.

Essa data não é celebração. É memória, denúncia e chamado.


📊 O tamanho da tragédia no Brasil

  • 335 mil pessoas vivem nas ruas hoje.
  • É 14 vezes mais do que em 2013.
  • Crescimento de 211% em 10 anos.
  • 63% estão no Sudeste.
  • Perfil: 84% homens, 70% negros, 52% sem ensino fundamental.
  • Crianças: 3%. Idosos: 9%.

(Fontes: CadÚnico, IPEA, Agência Brasil)


Violência e indiferença

Entre 2020 e 2024, foram registrados quase 47 mil atos de violência contra pessoas em situação de rua.
Muitos ocorreram em abrigos e hospitais — lugares que deveriam acolher.

E não podemos esquecer: também há relatos de violência policial, expulsões e abordagens brutais, como se a rua precisasse ser ‘limpa’ de gente

Não é só frio e fome. É viver em alerta constante, sem lugar seguro para descansar.


Políticas públicas: avanços e lacunas

  • Política Nacional para a População em Situação de Rua (2009)
  • Consultório na Rua (2012) – saúde nas ruas
  • Plano Ruas Visíveis (2023)
  • Comitê Técnico de Saúde (2024)
  • Política Nacional de Trabalho Digno e Cidadania para a População em Situação de Rua (PNTC PopRua, 2024)
  • Prioridade no Bolsa Família (2025)
  • Programas locais
  • Reencontro

Problemas persistem: dados incompletos, abrigos insuficientes, falta de moradia permanente, barreias burocráticas e políticas de reinserção.


Caridade não basta

Caridade salva o hoje.
Cidadania garante o amanhã.

Dar uma marmita é bom. Mas ninguém deveria depender disso.
Dar um cobertor é gesto humano. Mas ninguém deveria dormir ao relento.

Essa luta não é por esmola. É por direitos: moradia, saúde, trabalho, alimentação, dignidade.


Eu e Você Também Poderíamos Estar Lá

Quando passo por alguém dormindo na rua, não vejo um “mendigo”.
Vejo um reflexo possível de mim.

O morador de rua não é “o outro”. Ele é a lembrança viva de que a vida pode despedaçar qualquer um.

Talvez seja por isso que incomoda tanto: porque, no fundo, a rua nos mostra o espelho da nossa própria vulnerabilidade.


O chamado do 19 de agosto

Este dia é uma homenagem.
É também um grito contra a indiferença.
É para lembrar os mortos da Praça da Sé.
É para reconhecer os vivos que resistem todos os dias nas calçadas.
É para cobrar um país que ainda insiste em empurrar gente para o nada.


O que você pode fazer

  • Cumprimente, olhe nos olhos, reconheça.
  • Apoie projetos sérios e transparentes.
  • Denuncie a violência.
  • Cobre políticas públicas.

Conclusão

A rua não é lar.
O papelão não é cama.
O frio não pergunta nome, idade ou cor.

Enquanto houver alguém dormindo ao relento, todos nós estaremos incompletos.
O Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua é a chance de parar, olhar e reconhecer: ninguém deveria viver assim.


Assim como em O sangue que me trouxe até aqui: uma homenagem aos povos originários reconheci a memória e a dor que me constituem, e em Se Ele voltasse hoje, você perceberia? questionei nossa cegueira espiritual diante do sagrado que caminha entre nós, este texto sobre a população em situação de rua é mais um chamado. Porque a luta deles também é feita de sangue, silêncio e esquecimento; e, se não abrirmos os olhos, continuaremos a crucificar todos os dias aqueles que carregam em si a face de Deus nos becos, viadutos e calçadas da cidade.


⚡ Neemias Moretti Prudente é escritor, advogado, filósofo, professor e editor-chefe do Factótum Cultural.

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