A história real por trás de livros, documentários e do filme Eden (2024) — e o que ela ainda diz sobre nós

Uma ilha isolada no Pacífico. Um médico idealista. Uma baronesa excêntrica. E um mistério que atravessou o século sem respostas.

No início dos anos 1930, enquanto o mundo vivia o colapso do pós-guerra, o fascismo se alastrava pela Europa e a humanidade dava sinais de insanidade coletiva, um grupo de europeus resolveu fugir.

Partiu em busca de uma vida simples e autêntica em uma ilha desabitada do arquipélago de Galápagos, no Equador.

A ilha Floreana, isolada, vulcânica, silenciosa, parecia o lugar ideal para recomeçar — longe do barulho das cidades e dos horrores que se desenhavam na Europa. Mas o que começou como uma utopia ruiu rapidamente em tensão, desconfiança, desaparecimentos e morte.

Quase um século depois, a história inspira livros, documentários e até um filme recente: Eden (2024). A pergunta que permanece, no entanto, continua sem resposta:
o que realmente aconteceu naquela ilha?


A origem: um médico, uma paciente e um ideal

Em 1929, o médico e filósofo alemão Friedrich Ritter e sua amante (e paciente) Dore Strauch decidiram abandonar tudo e partir para Floreana. Levaram ferramentas, sementes, livros de Nietzsche e o desejo de viver fora da sociedade, praticando uma vida natural, autossuficiente e livre da moral burguesa.

Dore sofria de esclerose múltipla. Ritter acreditava que o isolamento e a simplicidade poderiam curá-la — e, com sorte, oferecer a ele a clareza necessária para escrever uma nova filosofia capaz de salvar a humanidade de si mesma.

Por um tempo, o plano parecia funcionar.


Novos habitantes, novas tensões

Em 1932, o casal Ritter-Strauch viu sua solidão invadida por uma família alemã comum, os Wittmer, que também decidiram tentar uma vida longe da civilização.

Margret Wittmer estava grávida e deu à luz na ilha. A convivência entre os dois grupos foi possível, mas tensa: a ilha era pequena, e os projetos de vida, muito distintos.

Logo depois, uma terceira figura chegaria à ilha — e com ela, o colapso.


A Baronesa e os amantes

Eloise Wagner de Bousquet, uma austríaca extravagante que se autointitulava “baronesa”, chegou à ilha com dois amantes: Robert Philippson e Rudolf Lorenz.

Ela anunciava planos grandiosos: construir um hotel de luxo e transformar Floreana em um destino turístico. Vestia-se com trajes exóticos, posava com armas e promovia sua imagem como “imperatriz da ilha”.

Sua presença desestabilizou a frágil harmonia local. Ciúmes, rivalidades, manipulações e disputas por poder e território tornaram a vida na ilha cada vez mais insustentável.


O desaparecimento e as mortes

Em 1934, a baronesa e Philippson desapareceram sem deixar vestígios.
Dore relatou que partiram rumo ao Taiti em um iate — mas nenhum barco foi registrado na região. Seus corpos nunca foram encontrados.

Pouco depois, Rudolf Lorenz tentou fugir da ilha com um capitão norueguês. Ambos morreram à deriva, e seus corpos foram encontrados mumificados a centenas de quilômetros, vítimas de insolação e fome.

No mesmo ano, Friedrich Ritter morreu, envenenado por carne contaminada. Dore sobreviveu — e alguns especularam que ela pudesse ter envolvimento.


As versões escritas: duas memórias, duas verdades

Depois de retornar à Alemanha, Dore Strauch publicou o livro Satan Came to Eden (1936), onde relata sua experiência na ilha. A obra mistura diário pessoal, crítica filosófica e acusações veladas.

Dore sugere que a baronesa foi assassinada, que Lorenz fugiu com medo, e que Ritter morreu em circunstâncias duvidosas.

Décadas depois, Margret Wittmer — que permaneceu na ilha com a família até sua morte em 2000 — publicou sua própria versão: Floreana: A Woman’s Pilgrimage to the Galapagos.

Sua narrativa é mais conservadora e discreta. Contradiz a de Dore, omite certos detalhes e retrata a baronesa como alguém “desequilibrada, mas não ameaçadora”.

Até hoje, as duas versões se chocam — e a verdade se perde no mar.


O documentário: cartas, imagens e silêncio

Em 2013, a história ganhou novo fôlego com o documentário The Galapagos Affair: Satan Came to Eden, dirigido por Dayna Goldfine e Dan Geller.

Usando cartas reais, gravações de época e entrevistas com os descendentes dos Wittmer (que ainda vivem na ilha e administram um hotel), o filme não tenta resolver o mistério, mas mostrar como ele se construiu.

É um mergulho profundo nas contradições humanas e nos limites da convivência — mesmo no que parecia ser o paraíso.


Eden (2024): o paraíso como tragédia anunciada

O filme Eden, lançado em 2024, se inspira livremente nos acontecimentos de Floreana.
A obra reimagina os personagens, atualiza o contexto e acentua o suspense psicológico, mas mantém o cerne da história: um grupo de idealistas se isola em uma ilha para fugir do mundo — e acaba confrontando aquilo que mais tentava evitar: a si mesmo.

O filme se destaca não só pelo clima denso e atuações afiadas, mas por fazer da ilha um personagem — um espelho da alma humana em colapso.


O que Floreana ainda nos ensina?

A história de Floreana é mais que uma curiosidade histórica. É um experimento humano involuntário, que nos faz refletir sobre perguntas urgentes:

  • É possível viver longe da sociedade sem carregar seus vícios para o novo lugar?
  • Até que ponto o idealismo resiste ao cotidiano?
  • O que acontece quando o poder, o desejo e o ego entram em conflito num espaço sem lei?

A Filosofia tem algo a dizer

Nietzsche acreditava que o ser humano deveria superar os valores herdados e criar novos.
Ritter tentou fazer isso — e morreu envenenado, talvez por si mesmo.

Sartre diria que “o inferno são os outros” — mas Floreana mostra que o inferno, às vezes, é o que cada um leva para dentro da ilha.

Hannah Arendt falou da banalidade do mal — e em Floreana, o mal não teve rosto. Não houve julgamento. Nem punição. Só silêncio.

A história nos lembra que, por mais que tentemos construir um paraíso, ele sempre estará à mercê da natureza humana.


Conclusão filosófica

O sonho de criar um Éden na Terra — longe da sociedade corrompida — fracassa porque o problema não é o mundo, mas o ser humano ainda não integrado.

E onde houver gente, haverá conflito, ego, disputa, silêncio e invenção de sentido.

Floreana é uma alegoria poderosa da tragédia da consciência desperta. Uma história real que se torna, sem querer, um tratado existencial, uma crítica à utopia racional e uma meditação sobre a verdade, o mal e o fracasso da razão diante da complexidade da vida.


A ilha continua lá

Hoje, Floreana ainda é habitada — e seus moradores descendem dos Wittmer.
Há um hotel simples. Turistas curiosos. Pouca conversa sobre o passado.

Mas a história permanece.
Nos livros. No documentário. No filme.
E, sobretudo, nas perguntas que ela nos obriga a fazer sobre nós mesmos.


E se fosse hoje?

Se essa história acontecesse nos dias de hoje (e, de certa forma, ainda acontece), ela mudaria o cenário — talvez não fosse numa ilha, mas em uma ecovila, uma comunidade alternativa, uma fazenda permacultural, uma tentativa de “desconectar” do sistema.

Mas o drama seria o mesmo.

Porque onde há gente, há sombra.
E onde há sombra não enfrentada, há repetição.

Nos dias de hoje, em meio a crises existenciais, guerras, colapsos climáticos e tecnológicos, o desejo de “fugir da civilização” volta com força.
Pessoas abandonam as cidades, largam empregos, buscam recomeçar do zero.

Mas muitos descobrem o que Floreana já ensinou:
não basta mudar de lugar — é preciso transformar o ser.


Talvez a paz esteja onde menos procuramos

Floreana mostra que a verdadeira fuga não é para fora, mas para dentro.
A paz não está na ilha desabitada, mas na mente que aprendeu a silenciar.
O paraíso não é geográfico — é um estado de consciência.

E talvez o Éden original nunca tenha sido um jardim físico, mas uma metáfora de um tempo em que o humano e o divino estavam unidos.
Quando perdemos essa união, passamos a procurar do lado de fora o que sempre esteve dentro.


Epílogo — Por Neemias Prudente

Quando conheci a história de Floreana, vi muito mais do que um mistério não resolvido. Vi um espelho.
Em 2023, após minha própria crise, experimentei o vazio, a solidão, o exílio interior — e, como os personagens dessa ilha, desejei fugir de tudo.

Mas descobri que o verdadeiro paraíso não está no isolamento geográfico, e sim na reconexão com nossa essência.
A ilha pode mudar de nome — pode ser uma kitnet, uma floresta, uma aldeia ou um quarto escuro — mas o enigma é sempre o mesmo:
como habitar a si mesmo sem naufragar?

Floreana me ensinou que não se trata de escapar do mundo, mas de aprender a viver com presença, verdade e luz onde quer que estejamos.
Mesmo que o mundo lá fora permaneça em colapso, a paz começa quando paramos de fugir do que somos.


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No silêncio denso de Floreana, onde a natureza espelha o abismo da alma humana, percebemos que o inferno nem sempre está fora — muitas vezes, é interno, moldado por desejos, frustrações e ilusões. Assim como os Therians: Animais Presos em Gente, ou Almas que se Esqueceram de Ser? que carregam em si a memória esquecida de outra forma de existência, ou como A Mulher Que Decidiu Viver Antes de Morrer: Uma homenagem à coragem de Mesannie Wilkins — e a todos que renascem no meio do fim, que escolheu renascer no meio do fim, o que se revela em Floreana é um chamado para lembrar quem somos, por baixo das máscaras e da civilização. Ao fim, talvez todos sejamos exilados de nós mesmos, tentando, como em Floreana, como os therians, como Mesannie, encontrar o caminho de volta — seja para a selva, para o galope ou para a essência esquecida que sussurra por liberdade.


E não se esqueça: Todo sábado, nossa coluna “Escrever para Não Enlouquecer” fala sério — mas só porque o universo exige equilíbrio. Segunda a gente volta com humor para os dias difíceis.

⚡ Neemias Moretti Prudente é escritor, advogado, filósofo, professor e editor-chefe do Factótum Cultural.

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