Há um momento em que a alma, cansada de esperar, monta no próprio cansaço e parte — sem mapa, mas com fé.

A história de Mesannie Wilkins é daquelas que o tempo tenta esquecer, mas o espírito não permite. Não é apenas a história de uma mulher, de um cavalo e de um cachorro — é a história de uma alma que se recusou a obedecer ao destino que lhe deram. Quando o mundo inteiro disse que era tarde demais, ela respondeu com uma sela, um chapéu e um caminho. Aos 63 anos, ela não tinha dinheiro nem família, havia acabado de perder sua fazenda e recebido do médico o diagnóstico de câncer no pulmão, com apenas dois anos de vida pela frente — e ainda assim, escolheu viver como nunca antes.

Era 1954. A televisão dominava os lares, os automóveis cortavam estradas recém-asfaltadas, e as cidades cresciam em ritmo de máquina. Mas Annie, como gostava de ser chamada, olhava para o mundo com olhos de terra batida e coração de horizonte. Nascida no Maine, uma região fria e isolada no nordeste dos EUA, ela nunca havia visto o mar. Nunca viajara, nunca tivera luxo. Só tinha um sonho: ver o Oceano Pacífico com seus próprios olhos. E como quem escuta um chamado divino — selado por um simples jogo de cara ou coroa — decidiu partir, mesmo que ninguém acreditasse, mesmo que morresse no caminho.

Com o pouco que lhe restava, comprou dois cavalos, um chamado Tarzan e outro Rex (de carga), preparou uma sela improvisada, prendeu sua cachorrinha Depeche-Toi e partiu. Era inverno. E ela partiu mesmo assim. Sem mapa confiável, sem GPS, sem plano, sem saber exatamente onde dormiria, o que comeria, ou se sobreviveria. O que ela levava consigo era algo muito maior: uma fé inquebrantável na bondade das pessoas e na beleza da vida — mesmo depois de tanto sofrimento.

Durante quase dois anos, cavalgou por mais de 8 mil quilômetros, cruzando dezenas de estados, enfrentando nevascas, tempestades, enchentes, doenças, picada de cobra, medo, fome, e olhares de julgamento. Dormia em celeiros, nas estradas, nas casas de desconhecidos. Era recebida com desconfiança por uns, com espanto por outros, mas com amor por muitos – e até de uma proposta de casamento de um pastor de cabras idoso. A cada passo de Tarzan, Annie parecia deixar para trás não apenas o Maine, mas também a tristeza, a desesperança, o rótulo de “coitada”, o diagnóstico, a solidão.

Sua história se espalhou. Jornais começaram a noticiar a “senhora a cavalo que cruzava os EUA”. Ganhou presentes, doações, entrevistas, e, mais que tudo, ganhou afeto. As pessoas enxergavam nela uma centelha de algo que todos buscamos: liberdade, coragem, renascimento. Annie não foi apenas até a Califórnia — ela foi até o centro do que significa ser humano. Mostrou que viver não é obedecer ao medo ou esperar a morte chegar. Viver é ousar. Viver é confiar. Viver é levantar do fundo do poço com poeira no rosto e esperança nos olhos.

Ao chegar no Pacífico, depois de uma jornada que mudaria sua vida — e inspiraria tantas outras — ela provou que o impossível é apenas uma palavra fraca para quem tem um porquê. Annie escreveu suas memórias num livro chamado Last of the Saddle Tramps, que hoje quase ninguém conhece. Mas seu espírito cavalga em cada pessoa que escolhe viver mesmo quando tudo parece perdido. Sua história foi resgatada lindamente por Elizabeth Letts, no livro The Ride of Her Life, lançado em 2021 — e talvez agora, ao ler estas linhas, você também a ajude a viver um pouco mais.

Maine, Tarzan, Rex e Depeche-Toi
Maine

Annie Wilkins retornou ao Maine em 1957. Embora sua fazenda já não lhe pertencia mais, em vez de se abater, Annie encontrou abrigo e afeto ao lado de sua amiga Mina Titus Sawyer, em Whitefield, onde viveu os anos que lhe restavam. Annie faleceu em 19 de fevereiro de 1980, aos 88 anos. Foi enterrada no jazigo da família, no Cemitério Maple Grove, em Minot. Em sua lápide, uma simples e poderosa inscrição: “Última dos Vagabundos da Sela – Mesannie L. Wilkins”.

E talvez a frase que ela mesma deixou seja o legado mais precioso:

“Essa é a questão do futuro. Você não chega lá imaginando. Só dá para chegar lá um passo de cada vez — e a parte mais difícil é dar o primeiro passo.”
— Annie Wilkins

Não olhe para trás; não é para lá que você está indo!


🌱 Epílogo — Quando a Jornada Vira Espelho

Conhecer a história de Mesannie Wilkins foi como olhar para um espelho de alma. Eu também estive no fim. Não um fim geográfico, mas um fim de mim. Estive cansado, quebrado, perdido, com o corpo adoecido e a mente querendo desistir. Também escutei médicos, amigos e demônios internos dizendo que era tarde, que acabou, que não dava mais. E como Annie, escolhi um caminho improvável. No meu caso, a estrada não era de terra, mas de silêncio. A montaria não era Tarzan, mas minha própria dor. E a companheira de viagem foi a Ayahuasca, que me chamou num sussurro e me colocou novamente de pé.

O que aprendi — e o que aprendo todos os dias — é que não importa a idade, a falência, o diagnóstico, o abandono, o vício ou o abismo: enquanto houver sopro, há caminho. Não é preciso saber para onde ir. Basta montar. Basta confiar. Basta dar o primeiro passo. E se você, que me lê agora, sente que não aguenta mais… lembre-se da senhora que cruzou um país inteiro com um cavalo e um sonho. E lembre-se de mim, que saí da escuridão cavalgando as palavras que hoje te alcançam. Se a estrada parece longa, saiba: você não está só. Eu estou aqui. E ela também.

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