Nem sempre Deus fala em línguas… Às vezes, Ele só fica quieto te encarando no escuro do quarto enquanto você tenta fugir com uma cerveja e um Zolpidem.

Nos últimos anos, a espiritualidade passou por uma transformação curiosa. Saiu da igreja, largou a batina, fez um detox de religião e foi parar no Instagram, com filtro sépia, incenso artesanal, pulseira 7 nós e trilha sonora em 432hz.

Hoje, ser espiritual é postar carrossel com frases de Osho que você não leu, participar de rituais com nomes em tupi misturados com sânscrito e frequentar rodas de cura onde todo mundo chora em cima de um cristal — e se não chorar, é porque sua frequência ainda está bloqueada.

Tem playlist no Spotify, altarzinho no Pinterest, reiki delivery e um guru que fala sobre ego… usando filtro de borboleta.

Não se fala mais em pecado, mas em “desalinhamento energético”.
Não se faz mais jejum, mas “desinflamação vibracional”.
Não se ora. Medita-se com trilha binaural.
E ao invés de confissão, você faz stories.
E o novo batismo acontece com copo de ayahuasca, três vômitos e uma crise existencial em posição fetal.

O novo culto é o retiro com comida vegana e topless opcional.
A gente quer milagre em cápsula.
Cura com efeito imediato.
Despertar espiritual com bônus de autoestima, pix universal e um corpo sarado de brinde.

Queremos terapeutas que não nos confrontem. Queremos gurus que nos embriaguem com frases de efeito. Queremos drogas sagradas que resolvam o vazio sem que precisemos entrar nele.


A lógica é mais ou menos assim: quanto mais você sente, mais você está evoluído. A nova religião é a fé na sensação.

Se arrepiou, é porque Deus te tocou.
Se chorou, foi a cura.
Se escutou um violão em ré menor, gritou “Glória a Zeus”.
Se viu uma borboleta no ritual, foi sua avó indígena mandando sinal.
Se vomitou, foi o trauma indo embora.
E se não aconteceu nada… bom, aí o problema é com você. Sua alma ainda está “fechada para balanço”. Partiu inferno!

Esse novo misticismo gourmetizou o sagrado.
Transformou o divino em uma experiência de consumo.
Hoje, o importante não é se você está em paz, mas se você viveu um “processo profundo” com direito a relato emocionante no WhatsApp da galera do retiro.


Eu mesmo já passei por algumas dessas fases.

Teve a vez que dormi incrédulo e acordei apóstolo. Conexão direta com o Criador, sem nem precisar de senha. Uma noite dormindo perdido, e no outro dia eu já estava praticamente um enviado.

Teve o dia em que uma oração de última hora me fez chorar como quem viu Jesus montado num disco voador de luz. E aí você pensa: “Agora sim. Agora entendi. Agora encontrei Deus.” Praticamente pronto pra abrir uma igreja com nome moderno tipo “Ministério Quântico do Amor Cósmico de Jezuis”.

Teve a fase evangelista, em que saía na rua pregando que Jesus estava voltando (e apressado, inclusive). Eu pregava com a empolgação de quem achava que o mundo ia acabar terça-feira. Na igreja, bastava um louvor caprichado com luz azul e ar-condicionado na medida que eu já tava falando línguas.

E teve também os rituais: ayahuasca, cogumelo, extasy do bom (o espiritual), onde o mundo parecia fazer sentido e minha missão era clara — salvar a humanidade e fazer um podcast.

Já fui crente, católico, espírita, muçulmano, místico, ayahuasqueiro, evangélico raiz, evangélico gourmet, cristão alternativo, budista de rodapé de livro, gnóstico, agnóstico, até devoto de orixá por uns meses e seguidor de gurus indianos no YouTube.

Participei de incontáveis igrejas e rituais, sempre em busca de um lugar onde a alma respirasse em paz. Sempre em busca de Deus.

Sim, também bati tambor, acendi vela, joguei búzios e tomei banho de arruda achando que ia resolver a ansiedade crônica.
Spoiler: resolveu por uma semana e meia.

A verdade é que já me batizei no Espírito várias vezes — algumas com água, outras com lágrima, outras com cogumelo.

E cada vez que me “convertia”, vinha aquela certeza inabalável: “agora vai!”
Ia mesmo… por uns três meses.
Depois, sem aviso prévio, o ego voltava pilotando a nave.
E lá estava eu de novo: ansioso, perdido, julgando os outros, pedindo sinal de Deus em número de placa de carro – de preferência um Fiat Uno vermelho com final 7.

Em todas essas vezes, por um tempo, minha vida mudou. A verdade é: foram experiências reais. Intensamente espirituais.
Eu parei de beber, perdoei meu pai, quis adotar um gato, criar um canal no TikTok, escrever um livro e fazer trilha às cinco da manhã.

Mas o tempo passou… e eu voltei.
Voltei a beber.
Voltei a julgar.
Voltei a usar zolpidem.
Voltei a querer brigar com quem me fecha no trânsito.

E foi aí que percebi: essas experiências são incríveis, mas não sustentam a vida sozinhas.


O problema da espiritualidade moderna é que ela vicia em pico. Elas não são ilusões. São reais. Transformadoras. Mas são também transitórias. E por isso mesmo, perigosamente viciantes se mal compreendidas. Mas por que depois vem a queda?

Porque o ego — esse danado — ainda mora aqui. E o ego, mesmo dormindo por uns dias, sempre acorda com fome. E volta a querer controle. Volta a usar o nome de Deus como medalha. Ou como escudo. Ou como desculpa.

Ela não quer a montanha. Quer o topo da montanha.
Mas ninguém quer subir. Muito menos descer.
Querem ser Buda, mas sem precisar passar pelo sofrimento e lidar com o ego (sim, aquele estagiário emocionado tentando ser Deus); Querem ser Jesus, mas sem precisar perdoar e amar. Querem a luz sem a sombra, a iluminação sem disciplina, a transcendência com acesso rápido via QR Code.

A verdade é que muita gente está usando a espiritualidade como uma droga socialmente aceita. Anestesia, mas não necessariamente cura ou transforma.
Ninguém quer lidar com o tédio e vazio da alma.

Todo mundo quer um arrepio no chacra cardíaco. Uma playlist que toca direto na Kundalini da alma. Like celestial, bênçãos instantâneas — com efeitos especiais. A espiritualidade transformou-se em um mecanismo de recompensa dopaminérgico – uma busca por experiências que causam prazer ou emoção como se fossem sinônimos de “presença de Deus”.

A espiritualidade contemporânea virou um parque de diversões do ego sensível. A lógica é simples: quanto mais dopamina, mais divina é a experiência. Uma espécie de Netflix do sagrado: se o episódio não for bom, eu troco de ritual.

E assim, sem perceber, deixamos de buscar a verdade… e passamos a buscar sensações.


E isso não quer dizer que rituais são ruins. De jeito nenhum.

Nem sempre a alma desperta sozinha. Às vezes, ela precisa de um empurrãozinho. Eu mesmo precisei de inúmeros!

A ayahuasca, o cogumelo, a meditação profunda, a oração sincera — todos são caminhos legítimos. São ferramentas poderosas de reconexão, clareza, expansão.

Mas são isso: ferramentas. Não são a casa.
São o impulso. Não o voo.
A função delas não é manter você conectado eternamente. É lembrar quem você é, pra que depois você caminhe com suas próprias pernas espirituais.

Só que o ego é esperto. Ele se disfarça de buscador.
E o que era sagrado vira escape.
O que era cura vira performance.
O que era um chamado vira mais um personagem.

Porque se você precisar da Ayahuasca toda vez que se perder…
Se você só lembrar de Deus com um cogumelo na língua…
Se o divino só vier com DJ, mantra, ritual, tambor e incenso…
Então o ego, esperto que é, vai fazer dessas ferramentas o novo vício sagrado.


Espiritualidade real não é show.
Não tem trilha sonora.
Não tem efeito especial.

A verdade é que espiritualidade de verdade… é um saco.

Sim, eu disse.
É deserto.
É silêncio.
É você chorando no banheiro achando que Deus te esqueceu porque ele parou de responder com emoji de coração.

A mística verdadeira não tem trilha sonora.
Ela fede às vezes.
Fede porque cutuca o ego.
Fede porque mostra que você é só um humano tentando bancar o Zaratustra de iPhone.

Às vezes, o que ela exige é você no chão, sem vontade de nada, sofrendo as dores do mundo, pensando se Deus te bloqueou.
Às vezes, é você lavando louça e percebendo que a raiva que sente do familiar é só o seu ego projetando a própria vergonha.
Às vezes, é você, em silêncio, aceitando que está se perdendo de novo — e escolhendo voltar com humildade.

Mas e o silêncio? E o deserto?
E aquela oração em que a gente não sente absolutamente nada?
Será que Deus estava ausente?
Ou será que Ele estava exatamente ali — esperando a gente cansar de pedir arrepio?

A verdade é que às vezes Deus não quer te fazer voar.
Quer apenas te ensinar a ficar.
A suportar.
A escutar o que você vive tentando calar.

A dor, quando bem acolhida, pode ser um portal.
O silêncio, quando suportado, pode ser um mestre.
E a ausência de emoção, quando aceita, pode ser uma forma de presença — mas daquelas que não massageiam o ego, só limpam a alma.

Nem tudo que arrepia é Deus.
E nem tudo que dói é o Diabo.
Às vezes, o que dói é só Deus fazendo faxina.

Porque, no fim, talvez Deus não queira te fazer sentir.
Talvez Ele só queira te transformar.

E isso, meu caro leitor, raramente dá prazer.
Mas sempre dá sentido.


O verdadeiro sinal de maturidade espiritual não é quanto você sente…
Mas quanto você consegue viver sem se perder de si mesmo.
É quando você não precisa mais de ritual para lembrar de Deus.
É quando você não precisa de arrepio para saber que está no caminho.
É quando o ego tenta te puxar, e você apenas sorri e diz: “Hoje não, amigão.”

E se precisar do chá de vez em quando, tudo bem.
Se quiser dançar no tambor, tudo certo.
Só não esqueça que o divino não está na experiência.
Está em quem você é depois dela.

Esse é o desafio: não despertar só para depois dormir de novo.
Mas permanecer acordado — mesmo quando tudo parecer escuro.

Um dia, Txai, a gente solta o copo.
Solta o chá.
Solta o som.
Larga o mantra.
Solta até a ideia de “ser espiritual”.

E simplesmente vive.
Com Deus na respiração.
No café com o filho.
Na brisa da varanda.
No silêncio sem euforia.

E aprende a fazer o que Jesus fazia:
Sentar no chão.
Ficar quieto.
Olhar pro próximo sem tentar vender um curso.

Sem necessidade de se perder…
E sem precisar de resgate para voltar.

“Ah, mas eu me reencontro no ritual…”
Amado, se você se perde toda semana, talvez o problema não seja a cidade… seja o GPS quebrado que você insiste em seguir com voz de terapeuta quântico.

Porque amadurecer espiritualmente talvez seja isso:
conseguir viver sem se perder…
E voltar quando se perde…
Sem precisar de cogumelo, cerveja ou fogueira — mas sem culpa se precisar.

Porque um dia, Txai, a gente larga as ferramentas.
E começa a andar com as próprias luzes. Essa é a esperança.

Ainda estou no caminho (às vezes na contramão), mas sigo tentando andar com mais verdade a cada dia — e isso, por enquanto, é o suficiente.


Essas experiências espirituais — intensas, contraditórias, às vezes milagrosas, outras só confusas — me fizeram entender que o caminho não é linear, e que cada queda tem seu lugar no processo. É como escrevi em A Sabedoria do Kintsugi, a dor, quando acolhida, pode virar ouro. E foi só depois de muitas “rachaduras na alma” que comecei a ver o real valor de me reconstruir por dentro. Como escrevi em Torne-se Quem Você É (Antes Que Seja Tarde)”, a jornada espiritual verdadeira não é sobre buscar mais experiências, mas sobre lembrar de si mesmo no meio do caos. Às vezes, a gente se enfeita de místico pra fugir do que é — quando, na verdade, o verdadeiro despertar começa quando a máscara espiritual cai. É aí que começa a coragem de ser, e não apenas parecer.


E não se esqueça: Todo sábado, nossa coluna “Escrever para Não Enlouquecer” fala sério — mas só porque o universo exige equilíbrio. Segunda a gente volta com humor para os dias difíceis.

Haux… Txai!

⚡ Neemias Moretti Prudente é escritor, advogado, filósofo, professor e editor-chefe do Factótum Cultural. Se perdeu entre os livros, os filmes, os boletos e os rituais de Ayahuasca. Escreve para não enlouquecer — e às vezes enlouquece para escrever melhor.

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