“Ó nobre, agora chegou o momento da morte. Deixa de lado todo apego e medo. Reconhece a luz pura e alcança a libertação.”
— Bardo Thödol


Enquanto o Ocidente foge da morte e a reveste de silêncio, tabus e medo, o Oriente, especialmente o Budismo Tibetano, a trata com reverência e lucidez. O Bardo Thödol, conhecido no mundo moderno como Livro Tibetano dos Mortos, é talvez a obra espiritual mais ousada e sagrada que já se escreveu sobre o tema.

Muito além de um texto sobre morrer, este livro é, na verdade, um manual de despertar da consciência, lido tradicionalmente no momento da morte ou após ela, para guiar a alma (ou consciência) pelos bardos — os estados intermediários entre vida, morte e renascimento.


📖 O que é o Bardo Thödol?

“Bardo” significa literalmente estado intermediário. E “Thödol” significa libertação através da escuta. Ou seja, este é um livro destinado a ser lido em voz alta para alguém que está morrendo ou já morreu, na esperança de que, mesmo nesse estado, a consciência ouça, reconheça a verdade e se liberte do ciclo de sofrimento.

Compilado por mestres tibetanos há mais de mil anos, o Bardo Thödol se tornou um roteiro espiritual para a travessia da morte. Mas também é — para os vivos — um lembrete de que a consciência cria a realidade, inclusive após a morte.


🌌 Os três bardos da morte

O texto descreve três principais bardos que a consciência atravessa após a morte:

  1. Chikhai Bardo – o momento da morte, em que a luz clara da mente primordial se manifesta.
    🔸 Se o praticante reconhecer essa luz, atinge a libertação instantânea.
  2. Chönyid Bardo – o estado de visões e aparições.
    🔸 Deidades pacíficas e iradas surgem, representando aspectos da própria mente.
    🔸 Quem entende que tudo é projeção, escapa do medo e do renascimento inconsciente.
  3. Sidpa Bardo – o caminho para o renascimento.
    🔸 A consciência, ao não se libertar, começa a se identificar novamente com desejos e tendências cármicas, o que a conduz ao próximo nascimento.

Metáforas espirituais poderosas

Nada no livro é literal — as deidades, visões e terrores descritos são expressões simbólicas da mente. O livro ensina que, no bardo, o que você vê é o que você é. Seus medos, desejos, ilusões — tudo se manifesta diante da consciência em forma de experiências “reais”.

A libertação acontece quando o praticante, mesmo após a morte, reconhece:

“Isso é apenas minha mente. Isso é vazio. Isso é Luz.”


🧘‍♀️ Por que esse livro importa para os vivos?

O grande ensinamento é simples e radical:
Tudo o que enfrentamos na morte é treinado em vida.
Morrer bem exige praticar a presença, a lucidez e o desapego em vida.

Meditar, contemplar a impermanência, praticar compaixão, não fugir da dor — tudo isso prepara a mente para reconhecer a verdade quando o corpo físico se dissolve.

“A morte é a maior oportunidade de libertação espiritual — mas só para quem se preparou.”


🔔 Reflexões para os buscadores do caminho

  • Se a mente cria a realidade após a morte, o que ela está criando agora?
  • Se há um momento em que tudo se dissolve, estamos prontos para desapegar?
  • E se o inferno ou o paraíso não forem lugares, mas estados mentais projetados no bardo?

📚 Curiosidades sobre o livro

  • A tradução mais famosa é de Evans-Wentz, que popularizou o termo “Livro Tibetano dos Mortos” no Ocidente.
  • Inspirou obras como “O Livro Tibetano da Vida e da Morte” e até influenciou psicólogos como Carl Jung.
  • Costuma ser acompanhado de comentários de lamas tibetanos, pois não é uma leitura simples.

💬 Frases do Bardo Thödol

“Ó nobre, tudo o que vês agora é projeção da tua mente. Se reconheces, alcançarás a libertação.”
“A Luz Clara é tua própria essência. Une-te a ela e sê livre.”


🕯️ Conclusão: um livro para morrer acordado — e viver desperto

O Bardo Thödol não é apenas um texto sobre a morte — é um espelho do nosso ego, da nossa ilusão, e da nossa possibilidade de despertar. Ele nos ensina que a vida inteira é um treinamento para morrer bem. E que morrer bem é, paradoxalmente, o maior sinal de que vivemos com consciência.

Não é um livro para ler com pressa, nem para entender com a mente lógica. É um texto para se deixar atravessar — com humildade, coragem e reverência. Porque, como bem nos lembram os mestres tibetanos:

“A morte chegará com certeza. Só não sabemos quando.”

🌑 Epílogo: Minha reflexão pessoal sobre o livro

Depois que encarei de frente meus próprios fantasmas — na solidão de uma kitnet, sob o efeito de medicinas e afins ou nas noites em claro com o Zolpidem — percebi que a morte que mais dói não é a do corpo. É a do ego. É o desmoronar das certezas, o colapso das máscaras, o silêncio quando tudo que você achava ser se desfaz. O Livro Tibetano dos Mortos me lembrou algo que a Ayahuasca já tinha sussurrado no escuro: a mente cria mundos. E se não aprendermos a morrer em vida, seremos apenas passageiros perdidos nos bardos da inconsciência, repetindo sofrimentos como se fossem eternos. Hoje, tento morrer um pouco a cada dia — das minhas ilusões, das minhas vaidades, dos meus medos — pra talvez, quando chegar a hora, reconhecer a Luz e dizer: ‘Ah, é você de novo… estou pronto.’

Há edições comentadas e traduzidas, como a de W.Y. Evans-Wentz, que é a mais famosa no Ocidente.Para adquirir o livro, clique aqui.


FILME: Viagem Alucinante (Enter the Void, 2009) – uma viagem pós‑morte inspirada no Livro Tibetano dos Mortos

Dirigido por Gaspar Noé, o filme acompanha Oscar, um jovem traficante em Tóquio, que é baleado. À medida que morre, seu espírito se manifesta no mundo pós‑vida e percorre os três bardos descritos no Bardo Thödol. Essa estrutura é apresentada logo no início por Alex, friend de Oscar, como uma explicação dos “estágios da morte” segundo o Livro Tibetano dos Mortos.

A narrativa audiovisual mergulha em estado alterados de consciência — sexo, neon, DMT, visões alucinógenas — representando o Chikhai Bardo, Chönyid Bardo e Sidpa Bardo de forma intensa, visualmente perturbadora e poeticamente simbólica. Não se trata apenas de uma “trip alucinógena”, mas de um filme que toma o espectador como consciência em transição.


📚 Cada livro é um feitiço. Se abriu este, talvez queira decifrar também A Roda de Cura pelo Ayurveda: um mapa sutil para curar o corpo, a mente e a alma.

Factótum Cultural

Tendência