Nietzsche gritou, Osho sussurrou, e o Xamã mostrou: meu problema não era a crise existencial — era eu mesmo tentando ser o que nunca fui

Dizem que a gente nasce puro. Alma leve, essência intacta. Um pequeno ser com cheiro de cosmos recém-nascido. Depois vem o nome, o batismo, o boletim escolar, a faculdade, a profissão, o casamento, o filho e os boletos — e pronto: o ser virou personagem. De si mesmo.

O tempo vai passando e você começa a esquecer quem é. Vai se confundindo com o que esperam que você seja: com o que o pai projetou, a mãe cobrou, a religião impôs, a sociedade rotulou, a escola moldou, o algoritmo reforçou, a profissão engessou, a exposa exigiu, o filho esbravejou, o zamigo validou e o zinimigo revelou. E quando vê, virou um Frankenstein de expectativas alheias. Até que um dia, entre uma mamada de cerveja quente em Morro de São Paulo e uma notificação do trabalho público, você se pega perguntando:

“Mas quem é esse aí que tá vivendo no meu lugar?”

Nietzsche, com sua delicadeza habitual, nos joga na cara:
“Torna-te quem tu és.”
O que, em linguagem menos filosófica, talvez signifique: para de ser otário e vai se encontrar. Você ainda precisa morrer para si mesmo, covarde metafísico.

Enquanto isso, Osho me oferecia um sorriso calmo e um chá de cogumelos mágicos:

“Relaxe. Aceite. Você já é quem você busca.”

Entre tapas e abraços filosófico-espirituais, comecei a desconfiar que nenhum dos dois sabia o que fazer com um zumano em crise existencial no interior do Paraná.

Mas, eu tentei. Sentei no tapetinho. Respirei. Lembrei do processo do fórum. Meditei mais. Paguei a pensão. Respirei de novo. A criança interior chorou. O adulto exterior pegou uma cerveja artesanal e fingiu autoconhecimento.

Enquanto isso, Nietzsche berrava: “transvalore teus valores!”
E eu pensava: “Eu só queria dormir bem e pagar os boletos.”

A real é que tornar-se quem se é parece bonito no papel. Mas ninguém avisa que antes de ser quem você é, precisa deixar de ser quem você não é. E isso, txai, dói mais que os juros do cartão de crédito.

Não é simples. Tornar-se quem se é exige desaprender. Esvaziar-se. Quebrar personagens. E isso dói. Porque muita gente prefere a dor conhecida da máscara do que o abismo desconhecido da alma.

Entre Nietzsche, Osho e o Padrão da Iluminação

Nietzsche nos manda para a luta: quebremos as correntes da moral de rebanho, das verdades impostas, da culpa cristã! Que sejamos senhores de nós!

Rajneesh Chandra Mohan Jain, vulgo Osho, por outro lado, tira os sapatos, cruza as pernas e sussurra com voz doce:

“Você já é. Apenas esqueceu.”

Ambos estão certos — e ambos são perigosos. Porque se levarmos a sério demais, podemos acabar pelados de tanga no meio do mato gritando “sou um Übermensch iluminado!” ou virando coach quântico vendendo “o segredo do não ser”. A saída, talvez, seja rir disso tudo e continuar cavando.

Cavar para dentro.

Dizem que a jornada mais difícil é aquela para dentro de si. Mas, convenhamos: quem quer mesmo saber quem é?

Depois de uma longa jornada, compreendi: não se trata de “tornar-se” algo, mas de parar de fugir de quem você sempre foi.

Eu? Tô tentando.

Já fui peão de roça. Aluno fracassado. Payboy de fim de semana. Professor frustrado. Evangelista de calçada. Servidor exausto. Palestrante do caos. Filósofo de boteco. Advogado sem terno. Escritor sem livro. Viajante estelar. Frequentador de zona. Já fui quase morto. Já fui marido, ex-marido, filho doente, pai culpado, dependente do álcool, cliente fiel do Zolpidem. Já fui o bonzinho. O revoltado. O sumido. Crente. Cético. O que queria morrer e o que queria ser abduzido (ainda quero!).

Tentei ser o filho exemplar. Depois, o aluno esforçado. Mais tarde, o funcionário público padrão. Já fui promessa, fracasso, renascimento e recaída. Já fui o que escrevia para não enlouquecer. Já fui quase tudo — menos eu mesmo. Agora sou o que escreve porque entendeu que a loucura é só um grito da alma sufocada pedindo espaço.

E quando digo “torne-se quem você é”, não estou falando de propósito de LinkedIn, nem de identidade visual para redes sociais. Estou falando de sentar com seu espírito num silêncio brutal, onde nenhuma desculpa sobrevive. Aquele lugar que você só acessa quando a vida desaba ou quando a sananga arde até sua ancestralidade.

Voltar para a alma é um processo lento, sujo, bonito e verdadeiro.

Talvez eu nunca me torne exatamente quem eu sou. Mas tô chegando perto. Cada vez que rasgo uma máscara, uma fatura, ou uma crença limitante, sinto que me aproximo.

E se Nietzsche me visse hoje? Talvez dissesse:

“Pelo menos você tentou, irmão. O resto tá no TikTok vendendo curso.”

Hoje, continuo tentando. Escrevo para não enlouquecer — e às vezes enlouqueço para escrever melhor. Carrego cicatrizes que viraram palavras, e palavras que viraram caminho. Sou um monge com boletos. Um eremita que atende ligações de cliente. Um buscador que ainda cai em promoções de livros no Instagram.

Ser quem se é, no mundo de hoje, não é uma chegada. É um exercício diário de resistência. É meditar enquanto o WhatsApp vibra. É lembrar da essência entre uma notificação de pix do Banco do Brasil e uma visita do carteiro com livros da amazon.

Ser quem você é cura.

Cura o fígado inflamado. Cura a ansiedade do personagem que vive correndo para ser aceito. Cura as noites mal dormidas. Cura a vergonha de ser sensível. Cura a sensação de estar deslocado mesmo rodeado de gente.

Ser quem você é assusta. Porque você vai parar de caber nos moldes. Vai começar a perder pessoas. Vai ser chamado de estranho, místico, chato, instável, radical. Mas também vai começar a atrair os que brilham na mesma frequência. Vai ter paz. Vai ter chão. Vai ter norte — mesmo sem mapa.

E talvez, finalmente, vai poder olhar no espelho e dizer:

“Agora sim… esse sou eu. Com todas as minhas feridas, com toda minha luz.”

Um convite para quem sente o chamado

Se você está lendo isso e sentindo algo vibrar aí dentro — mesmo que seja só um incômodo — talvez seja a sua alma batendo na porta. Abrace esse chamado. Desligue um pouco o barulho. Respire. Observe. Medite. Caminhe. Vomite o que não é seu. Chore se precisar. Vá para a mata se puder. E escute.

Escute a sua essência.

Nietzsche chamava de vontade de potência.
Osho chamava de despertar da consciência.
Os xamãs chamam de espírito.
Eu chamo de sobrevivência.

Quando o ego cai, ou perde o controle, o que sobra é quem você realmente é.

Porque se você não se tornar quem você é… alguém vai ocupar esse lugar.
E esse alguém pode ser qualquer coisa — menos você.

Spoiler: no fundo, eu só quero viver em paz, plantar uns tomates, ler uns livros, escrever sobre a vida e fazer piada com a tragédia humana. Nada de beca preta e vazio existencial.

Epílogo: Manual de instruções para quem quiser tentar

  1. Desconfie de todo “você tem que”.
  2. Largue as máscaras, mas leve protetor solar.
  3. Aceite que talvez você nunca “chegue lá”.
  4. Seja ridículo. O mundo já é sério demais.
  5. Não se compare. Nem com Nietzsche. Nem com seu primo coach.
  6. E se tudo falhar… respire. Ou tome chá com Osho.

Talvez eu nunca me torne plenamente quem eu sou. Mas a cada texto, a cada silêncio, a cada erro, a cada choro abraçado com meu filho, sinto que me aproximo.

E você, txai? Já começou a esquecer quem te disseram que você era?

Se precisar, tô por aqui. Com chá, humor e acolhimento.

Vai, fio… dá teu jeito. Boa sorte, guerreirinho.

REFERÊNCIAS

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ecce homo: de como a gente se torna o que a gente é. Porto Alegre: L&PM, 2016. (Coleção L&PM Pocket, v. 301).

OSHO. Torna-se quem você é: reflexões extraordinárias sobre assim falou Zaratustra de Nietzsche. Trad. Lauro Henriques Jr. São Paulo: Alaúde, 2017.

PRUDENTE, Neemias Moretti. Nietzsche para Todos: Filosofia com Humor para o Dia a Dia. Maringá: Factótum Cultural, 2024. (Coleção Conhecimento & Humor, V. 1).


Talvez tudo isso — tornar-se quem se é, rasgar personagens, retornar à alma — seja só mais um capítulo dessa longa jornada de volta pra casa. Um caminho que já comecei a trilhar quando fui iniciado no silêncio da mata (O Dia em Que Fui Iniciado) e reencontrei minha própria história espelhada no velho conto do filho perdido que volta, não para pedir perdão, mas para lembrar quem é (Uma Jornada Épica Sobre a Parábola do Filho Pródigo). No fundo, todos estamos tentando isso: voltar, não para onde viemos — mas para onde nunca deveríamos ter saído.

E não se esqueça: Todo sábado, nossa coluna “Escrever para Não Enlouquecer” fala sério — mas só porque o universo exige equilíbrio. Segunda a gente volta com humor para os dias difíceis.

⚡ Neemias Moretti Prudente é escritor, advogado, filósofo, professor e editor-chefe do Factótum Cultural. Se perdeu entre os livros, os filmes, os boletos e os rituais de Ayahuasca. Escreve para não enlouquecer — e às vezes enlouquece para escrever melhor.

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