Em algum lugar entre o Código Penal e o colapso da função de onda, nasce a dúvida razoável.

Física quântica, pra começo de conversa, é aquele ramo da ciência que estuda o comportamento das menores partículas do universo — elétrons, fótons, quarks e outras coisinhas minúsculas que se recusam a seguir as regras da lógica tradicional. No mundo quântico, uma partícula pode estar em dois lugares ao mesmo tempo, o simples fato de observar algo já altera o resultado, e tudo está misteriosamente conectado. É o terreno do princípio da superposição, do efeito do observador, da função de onda, da equação de Schrödinger e de uns entrelaçamentos que nem Freud explica. Parece loucura? É porque é mesmo. Mas funciona. Tanto que revolucionou a ciência.

Agora respira. E tenta imaginar esse universo sendo aplicado ao Direito. É aí que nasce a chamada advocacia quântica — um conceito que mistura os princípios da física quântica com a prática jurídica. Ou, como alguns dizem por aí, “uma nova forma de advogar baseada na consciência, na energia e na intenção”. Basicamente, trata-se da ideia de que tudo no processo jurídico é interligado: cliente, juiz, promotor, palavras, pensamentos e até o mau humor da servidora do cartório. Em outras palavras, você não vence uma ação só com petição: você precisa vibrar na frequência da sentença favorável. E, se possível, acender um incenso.

O problema é que essa mistura entre átomo e artigo de lei virou um terreno fértil para esoterismo disfarçado de tese jurídica. O advogado quântico, segundo essa corrente, não apenas elabora teses — ele co-cria a realidade jurídica com o universo. Ele não interpõe um recurso, ele envia uma intenção ao campo morfogenético da Justiça. E se a decisão sair desfavorável, a culpa não é da jurisprudência, nem da ausência de provas — é do desalinhamento vibracional do advogado com o fluxo cósmico do tribunal. Fácil, não?

Não faltam vídeos, cursos e mentorias ensinando a aplicar a “Lei da Atração” no processo penal. “Mentalize a absolvição.” “Use linguagem de alta frequência na sustentação oral.” “Acredite no resultado antes mesmo da audiência.” Parece piada, mas tem gente aplicando. Aparentemente, o Habeas Corpus agora também pode ser feito com cristais e frases motivacionais. Claro, desde que você pague R$ 997 no curso, em até 12 vezes sem juros.

Mas vamos ser justos. Por baixo do misticismo de PowerPoint, existe uma ideia até bonita: a de que o Direito é humano, relacional, emocional, energético — e que o advogado não é só um técnico, mas um ser sensível, que influencia e é influenciado por tudo o que o cerca. Quem atua na advocacia criminal sabe disso. A forma como você olha para o réu, como se posiciona perante o juiz, como conta a história na audiência — tudo isso muda o rumo das coisas. E às vezes o que salva um acusado da cadeia não é a letra fria da lei, mas a narrativa viva que toca um pouco da alma de quem julga.

Nesse sentido, talvez exista mesmo uma dimensão quântica na advocacia. Uma dimensão que não se explica só com doutrina, mas com presença, consciência, percepção, empatia — e talvez até um pouco de fé. Mas o risco é grande quando essa ideia vira desculpa pra ignorar o básico: estudar o processo, entender o caso, cumprir o prazo, responder o cliente. Uma coisa é você compreender que tudo está interligado. Outra é achar que pode substituir um bom memorial por um banho de alecrim.

Na prática, a chamada advocacia quântica tem dois caminhos. O primeiro é o do autoengano: aquele onde o advogado se esconde atrás de palavras bonitas e conceitos mal digeridos pra justificar uma prática fraca, emocionalmente desgastada e intelectualmente preguiçosa. O segundo é o caminho de quem reconhece que o sistema é brutal, desigual, adoecedor — e, por isso mesmo, tenta buscar algum sentido maior na profissão. Mesmo que esse sentido envolva meditar antes da audiência ou respirar fundo ao escrever uma petição.

A verdade é que o sistema de Justiça não se importa com sua frequência energética. Ele segue em marcha, punindo os mesmos de sempre, ignorando contextos e rindo da nossa tentativa de humanizá-lo. Mas se, no meio desse caos, você encontrar na tal da advocacia quântica um jeito de não surtar, de cuidar de si e de lembrar que ainda é humano — tudo bem. Só não esquece que nenhum mantra substitui uma boa tese defensiva. Que nenhum cristal vai anular uma prisão preventiva. E que, por mais quântico que você seja, é bom revisar o processo antes de ir pra audiência.

Porque entre o campo unificado da consciência e o campo minado do Código Penal, ainda é você quem tem que sustentar a tese.

… e o universo — bem, o universo até pode conspirar… mas quem colapsa é você, toda segunda-feira, quando abre o e-mail e vê o boleto. No fim das contas, quem paga o pato é sempre o réu.

Aliás, se você sobreviveu quanticamente até aqui, não deixe de ler: “Só gosta de segunda-feira quem tem amante no trabalho.”

⚡ Neemias Moretti Prudente é escritor, advogado, filósofo, professor e editor-chefe do Factótum Cultural. Se perdeu entre os livros, os filmes, os boletos e os rituais de Ayahuasca. Escreve para não enlouquecer — e às vezes enlouquece para escrever melhor.

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