Escrever Para Não Enlouquecer – Por Neemias

Ninguém nunca viu Zeus, mas todo mundo já viu a segunda-feira.
A segunda-feira já começa no domingo depois do Fantástico. Vai entrando pelas frestas da mente no fim do domingo. Ela não chega. Ela se arrasta. Se infiltra. Enquanto o domingo é uma ilusão, um orgasmo espiritual de 24 horas em que fingimos ser livres, a segunda vem com o tapa na cara da realidade. Essa é a verdade que ninguém posta no Instagram.
É segunda e você tem que levantar, colocar uma calça (mesmo que de moletom) e fingir que é alguém funcional. Não importa se você é advogado, filósofo, professor, iluminado, ufólogo ou faz TikTok com gato — a segunda-feira vem pra todos.
Acordar na segunda é um ato de resistência, ainda mais depois daquele zolpidem de domingo à noite. Não há poesia no alarme das 6h. Nem propósito no café ralo. É você contra o sistema, contra o cansaço, contra o espelho que reflete uma alma que só queria mais meia hora — ou meia vida — de paz. Segunda-feira não perdoa ninguém. Nem santo. Nem ateu. Muito menos eu.
É o dia da verdade. E a verdade é que você não quer estar ali. É como aquele relacionamento tóxico que a gente não consegue largar — você sabe que vai se ferrar, mas ainda assim volta, toda semana. A segunda-feira é uma espécie de Sísifo moderno: a gente empurra o processo montanha acima, só pra ele rolar de volta na próxima semana.
Talvez por isso só goste de segunda-feira quem tem amante no trabalho. Pra esse, a segunda vem com cheiro de pecado e perfume barato. Pra nós, vem com boleto, clientes, advocacia e cara de “por que mesmo eu escolhi essa profissão?”. A segunda não oferece afeto. Oferece tarefas. Oferece notificações. Oferece a conta que chegou sem que ninguém tivesse pedido. Chega aquela mensagem no WhatsApp às 7h42 com um “bom dia, conseguiu ver aquele processo?” — e você nem conseguiu ver a própria alma ainda.
Tem gente que acha segunda-feira uma benção. Gente que acorda cedo, faz yoga, toma suco verde e posta “gratidão” com emoji de sol. Essas pessoas me assustam mais que as más notícias. Porque ou elas estão iluminadas demais ou completamente alienadas. Eu não sei qual das duas coisas é pior.
Ah, e tem os boletos. Aqueles documentos sagrados do capitalismo que brotam como fungos na geladeira emocional da nossa existência sussurrando: “pague-me”. Os boletos não dormem. Às vezes parecem até multiplicação dos pães: você paga um e aparecem cinco. E tem um detalhe místico — eles sempre vencem na segunda-feira. Coincidência? Não. É sadismo universal.
A espiritualidade não dá conta da segunda. Nem a psicologia e muito menos autoconhecimento. Nem os memes e os ETs. Ah, os ETs… com certeza evitam pousar na Terra às segundas. Segunda-feira é densa demais até pra eles. Capaz de aparecerem só na quinta, quando a gente já se acostumou com a derrota da semana e está mais aberto ao contato. Segunda não é dia de abdução — é dia de boleto, de estresse, de café fraco e de alma arrastada. Se tem vida inteligente lá fora, ela sabe a hora de não incomodar.
Nietzsche falava do eterno retorno. Mas tenho certeza que se tivesse acordado toda segunda com 78 notificações no celular, um filho chamando “paiiii, me leva para a escola” e o extrato bancário piscando vermelho, ele teria desistido da filosofia e ido vender miçanga em Morro de São Paulo (saudade da Bahia). Porque o eterno retorno da segunda-feira humilha qualquer ideia metafísica.
O filósofo existencialista francês — que provavelmente odiava a segunda tanto quanto a vida — diria que ela é o lembrete semanal de que estamos condenados a escolher entre trabalhar ou virar um mendigo romântico. Bukowski, por outro lado, já teria aberto a terceira cerveja e mandado o chefe ir tomar naquele lugar onde o sol não brilha. E você, meu caro leitor, está aí — entre o café e o Projudi, tentando decidir se sobrevive ou se enlouquece de uma vez por todas.
Mas a gente vai. Vai porque tem que ir. Porque tem alguém contando com a gente. Porque não dá pra se esconder pra sempre. Porque, no fundo, a gente sabe: a vida é isso mesmo — um trem desgovernado passando toda semana pela estação chamada “segunda”. E ou você sobe, ou fica na plataforma remoendo a própria miséria.
E você só queria estar em casa, pelado e lendo Bukowski. Mas não pode. Porque você é adulto. E adultos não têm o direito de não funcionar. Aluguel não se paga com filosofia e muito menos com gratiluz.
A segunda-feira é também o dia oficial da promessa. Prometemos dieta, academia, leitura, meditação, menos cerveja e mais gratidão. Até o plano de fugir para uma fazenda e criar gado. Tudo é possível, até terça-feira. Porque terça já é uma nova prisão.
No meio do caos, há um milagre silencioso: o riso – essa forma evoluida de oração que transforma o sofrimento em riso, o tédio em crônica, a angústia em texto. Rir da desgraça. Rir do patrão. Rir de si mesmo. Rir até chorar. Porque se não for pra rir disso tudo, meu amigo, melhor dormir até terça. Ou até a aposentadoria — que talvez nem venha.
Escrever sobre a segunda-feira é fazer um retrato da humanidade em seu estado mais cru: de ressaca, com pressa e sem vontade. É por isso que ela é tão odiada. Porque ela mostra quem somos quando os filtros caem.
A segunda-feira é dura. Mas nós também somos. Porque resistir a ela é, em si, um ato de coragem. Um grito silencioso de quem olha pro abismo do relógio e diz: “vou só mais uma semana, depois eu vejo o que faço da minha vida.” Vai que fui jogado nesse looping por engano!
Segunda é o dia em que eu penso seriamente em largar tudo e virar monge. Mas enquanto esse momento não chega, seguimos: com Bukowski na cabeça, boletos no bolso, humor ácido na língua, e fé — não em Zeus, mas em alguma sexta-feira (ou alguma invasão alienígena) que, um dia, virá nos salvar.
O que me salva na segunda-feira é saber que não estou sozinho. Que tem uma multidão acordando com cara de derrota e tentando parecer profissional às 8h da manhã. Então, se você acordou hoje e pensou: “não aguento mais essa m*rda”, saiba que você está lúcido. Isso é ótimo. A insanidade começa justamente quando você acha que amar a segunda-feira é normal.
E se ainda estamos aqui, mesmo com tudo contra, talvez sejamos mais fortes do que parecemos. Porque, convenhamos: sobreviver à segunda-feira já é um tipo de vitória.
No fim das contas, eu escrevo pra não enlouquecer (e especialmente não surtar na matrix). Porque falar enlouquece. Gritar cansa. E escrever, mesmo torto, mesmo amargo, ainda é uma forma de respirar. E é isso que estou fazendo agora — enquanto a segunda-feira me encara, e eu encaro de volta.
Ela vem. Sempre vem. Mas agora eu também venho. Com palavra na mão, sarcasmo nos olhos e um café que talvez não resolva nada, mas engana bem.

⚡ Neemias Moretti Prudente é escritor, advogado, filósofo, professor e editor-chefe do Factótum Cultural. Se perdeu entre os livros, os filmes, os boletos e os rituais de Ayahuasca. Escreve para não enlouquecer — e às vezes enlouquece para escrever melhor.





