Estoicismo: por que há tantos livros sobre essa escola filosófica?

Estoicismo: por que há tantos livros sobre essa escola filosófica? — Foto: Getty Images

Muitas vezes retratado como uma linha de pensamento insensível e sem emoções, movimento de 2,3 mil anos atrás está em alta nas livrarias do país; entenda as origens disso.

Europa vivia tempos turbulentos nos idos dos anos 160 a 180 d.C. Os romanos travavam uma longa guerra contra os germânicos e uma praga, que entrou para a história com o nome de Peste Antonina, ceifava vidas em quantidades bíblicas. Estima-se que a doença, provavelmente varíola, tenha matado pelo menos 5 milhões de pessoas em 15 anos.

Envolto em pensamentos sobre a morte, a brevidade e as vicissitudes da vida e a busca pela felicidade, um homem compilou pensamentos, ideias, questões pessoais e outros assuntos ao longo daqueles anos em uma série de livros introspectivos.

Provavelmente, nem foram escritos para ser publicados. Boa parte ele escreveu durante as campanhas militares. Estava completamente mergulhado no duro contexto da época, e não podia ser diferente, já que estamos falando do homem mais poderoso do Ocidente naquele tempo: Marco Aurélio, o último dos chamados “Cinco Bons Imperadores Romanos” e um dos filósofos mais conhecidos de uma corrente que está em alta, o estoicismo.

Nos últimos tempos, é possível que você tenha reparado, nas vitrines de livrarias e nas listas de mais vendidos na categoria de autoajuda, em livros com títulos como: A Arte de ViverUm Café com SênecaO Pai Estoico e Diário Estoico, além da própria obra de Marco Aurélio, Meditações. Modas editoriais do tipo, que dão uma sensação de que de repente várias editoras estão lançando muitos livros em torno de um mesmo tema ou com mesmo estilo, são corriqueiras e naturais do mercado.

Só nos últimos anos, tivemos a onda dos livros de colorir e aqueles de desenvolvimento pessoal com palavrões no título. Só que esse novo movimento traz algo de diferente, pois tem como base algo muito mais profundo, uma das principais correntes da filosofia clássica. Mas por que o estoicismo está na moda?

Virtude e harmonia com a natureza

Marco Aurélio, Sêneca e Epiteto são os nomes mais conhecidos do estoicismo. Os três pensadores viveram no Império Romano, nos dois primeiros séculos da Era Comum. Porém, o pensamento estoico surgiu bem antes, na Grécia do século 4 a.C.

“Perdurou por cerca de 500 anos e passou por modificações, como é natural em uma corrente de pensamento que atravessou tanto tempo”, explica Roberto Bolzani Filho, professor de filosofia da Universidade de São Paulo (USP) com especialização em história da filosofia antiga. Além disso, sobraram poucos fragmentos desses textos estoicos mais velhos, diferentemente dos três pensadores romanos, que, por isso mesmo, acabaram ganhando mais evidência.

Zenão, um bem-sucedido comerciante de Cítio (nome pelo qual a ilha de Chipre era conhecida na Antiguidade), é tido como o pai do estoicismo. Em cerca de 300 a.C., ele sobreviveu a um naufrágio quando viajava para Atenas. Lá, desiludido com a grande perda material que teve, conheceu a filosofia cínica, criada uns 100 anos antes por Antístenes, discípulo de Sócrates que defendia que a verdadeira felicidade dependia de se libertar de coisas efêmeras e externas, como luxo e poder.

O cínico mais importante era Diógenes, que, segundo a lenda, vivia em um barril. Tão prestigiado quanto humilde, ele teria recebido a visita de ninguém menos que Alexandre, o Grande. O imperador pediu ao sábio que lhe dissesse o que desejava, pois seria prontamente atendido. Ao que Diógenes, com a astúcia de um Chaves sincerão respondendo ao Quico, revidou apenas que queria que Alexandre saísse da frente, pois estava encobrindo o sol. Assim, mostrou ao grande imperador que era mais rico e mais feliz que ele.

Os cínicos defendiam que não devemos nos preocupar com o sofrimento ou a morte — muito menos com o sofrimento dos outros —, porque esses grandes dilemas são fatores externos. Tal aspecto “insensível” explica o uso moderno que damos a termos como “cinismo” e “cínico”. Zenão assimilou os ensinamentos dos cínicos e de outros pensadores mais antigos, como Heráclito de Éfeso. Ele passou a reunir seus ouvintes sob um pórtico, que em grego é stoa. Daí surgiu o nome “estoico”.

Marco Aurélio foi o último dos chamados “Cinco Bons Imperadores Romanos” e um dos filósofos mais conhecidos do estoicismo — Foto: Getty Images
Marco Aurélio foi o último dos chamados “Cinco Bons Imperadores Romanos” e um dos filósofos mais conhecidos do estoicismo — Foto: Getty Images

Assim como Heráclito, os estoicos defendiam que cada pessoa era um mundo em miniatura, parte de um mesmo macrocosmo, uma razão universal, o “logos”. Para eles, não existia diferença entre o indivíduo e o Universo nem entre espírito e matéria. Havia apenas uma natureza e um direito natural, válido para todas as pessoas.

Eram essas leis da natureza que regiam, por exemplo, doenças e a morte, então os humanos deveriam aprender a aceitar o destino. Nada é por acaso. Trata-se de tomar uma atitude quanto ao que podemos exercer algum poder — pensando no impacto que isso terá sobre outras pessoas e mantendo o autocontrole — e aceitar o que não podemos controlar. Hoje, chamar uma pessoa de “estoica” pode significar que se trata de alguém impassível, que reprime emoções. Mas os antigos estoicos não defendiam isso.

Mais de 300 anos se passaram, a maior parte dos textos de Zenão se perdeu, e o estoicismo passou a ser representado mais pelas palavras de um homem chamado Epiteto, cujos ensinamentos chegaram aos nossos tempos por meio de livros que teriam sido publicados pela primeira vez por um discípulo dele, Arriano.

Epiteto nasceu na escravidão em cerca de 50 d.C. na Anatólia (atual Turquia), emigrou para Roma, ganhou liberdade, mas acabou banido da capital no fim do século — assim como todos os filósofos, por um decreto do imperador Domiciano. Uma vida bem diferente da de Marco Aurélio.

Os gregos criaram várias escolas dedicadas a pensar em como viver bem, e muitos desses princípios são universais, atuais e facilmente aplicáveis hoje”

— Tomás da Veiga Pereira, um dos sócios-fundadores da editora Sextante

Já o outro nome da trinca, Sêneca, cresceu em um ambiente rico e intelectual, foi senador, mas acabou exilado, acusado de adultério. Foi perdoado, retornou a Roma e virou tutor de Nero em seus primeiros anos no comando do império — não coincidentemente, foi a época mais tranquila da controversa passagem de Nero pelo cargo.

Em 65 d.C., acusado de participar em uma conspiração para matar o imperador, Sêneca foi forçado a se suicidar. É provável que ele fosse inocente, e a cena ficou eternizada nas artes plásti- cas, pintada por nomes como Peter Paul Rubens.

Em suma, foram vidas bem diferentes. O que as três biografias têm em comum é a carga dramática. Marco Aurélio, aliás, morreu de causas desconhecidas, durante suas campanhas militares na Europa Central. Alguns historiadores cravam que o episódio encerrou os cerca de 200 anos da Pax Romana, a era de ouro do império. Todos os três tiveram, durante a vida, experiências mais que o suficiente para exercer os princípios básicos do estoicismo.

Mas o sucesso deles dois milênios depois não se deve necessariamente a suas vivênias, e sim a seus ensinamentos, úteis para os dias de hoje e, o melhor, em um formato acessível. “Em linhas gerais, em seus textos há maior ênfase nos temas morais, tratados principalmente do ponto de vista do indivíduo que busca ser feliz”, explica Bolzani. “Muitos foram escritos em tom exortativo, em proposições breves, de acesso menos complexo do que é costume encontrar nos textos filosóficos.”

Ou seja, o próprio formato dos escritos estoicos já parece ter um forte apelo para um público mais amplo. A obra de Epiteto é caracterizada por diálogos curtos. O texto mais importante de Sêneca é uma troca de correspondência (Cartas a Lucílio). Marco Aurélio deixou seus pensamentos em máximas sucintas.

Fenômeno editorial

Ainda que esses textos de quase 2 mil anos possam ser considerados acessíveis, não são eles que lideram a nova onda dos livros estoicos. Os destaques são obras escritas por autores contemporâneos, com formações diversas. Sharon Lebell era uma musicista que, nos anos 1980, se tornou uma autora especializada em livros de pegada filosófica. Em A Arte de Viver (Sextante), ela conta que usa “linguagem e imagens simples” para interpretar, improvisar e apresentar os ensinamentos de Epiteto “da maneira mais direta e proveitosa possível.”

O publicitário Ryan Holiday se autointitula “especialista em manipulação midiática” e aplica o estoicismo ao marketing — ou simplesmente aos desafios do dia a dia. Publicou livros como O Pai EstoicoA Vida dos Estoicos e Diário Estoico (todos lançados no Brasil pela Intrínseca). Já David Fideler é um ex-professor universitário com doutorado em filosofia que lançou livros sobre Jesus, poesia islâmica e textos pitagóricos. Sua obra mais famosa, no entanto, é Um Café com Sêneca (Sextante).

Tomás da Veiga Pereira, um dos sócios-fundadores da editora Sextante, acredita que essa tendência de livros baseados na filosofia clássica ainda tem muita lenha para queimar. “Os gregos criaram várias escolas dedicadas a pensar em como viver bem, e muitos desses princípios são universais, atuais e facilmente aplicáveis nos dias de hoje”, diz.

“No estoicismo, a vida humana só faz sentido do ponto de vista de um todo mais amplo, a natureza”

— Roberto Bolzani, professor de filosofia da USP

Mas, segundo ele, não houve outra escola filosófica que tenha rendido tanto para o mercado editorial. No Brasil, A Arte de Viver vendeu 90 mil exemplares em seis anos. Um Café com Sêneca, em dois anos, passou dos 30 mil. São números “muito expressivos”, diz a Sextante.

Rebeca Bolite, editora-executiva da Intrínseca, lembra que o interesse do público por filosofia é cíclico. O fenômeno O Mundo de Sofia, lançado nos anos 1990, é um grande exemplo. O “romance da história da filosofia”, como diz a capa, vendeu dezenas de milhões de cópias (mais de 1 milhão só no Brasil; é o livro mais vendido da história da Companhia das Letras). “Além disso, nos anos 2000, houve muita procura pelos grandes filósofos no geral”, lembra Bolite. “A Intrínseca publicou alguns livros fazendo esse uso da filosofia de forma mais ampla.”

Sêneca é um dos expoentes do estoicismo; seu texto mais importante é uma troca de correspondência, "Cartas a Lucílio" — Foto: Getty Images
Sêneca é um dos expoentes do estoicismo; seu texto mais importante é uma troca de correspondência, “Cartas a Lucílio” — Foto: Getty Images

As próprias Meditações, de Marco Aurélio, estão longe de ser no- vidade nas livrarias. A obra esteve entre as mais vendidas nos Estados Unidos em 2002 e já foi citada como livro de cabeceira de líderes mundiais. Wen Jiabao, primeiro-ministro da China de 2003 a 2013, disse que o leu mais de 100 vezes. Bill Clinton, presidente dos EUA entre 1993 e 2001, citou Meditações como seu livro preferido.

Segundo Bolite, a Intrínseca, que publica os livros de Ryan Holi- day desde 2017, ficou muito satisfeita quando o autor enveredou para o estoicismo. “Ele tem um público fiel no Brasil, seus livros já venderam 300 mil exemplares”, conta. “O Diário Estoico, lançado no início de 2023, está entre os dez mais vendidos da editora.” Ela concorda com Bolzani e acredita que a acessibilidade do estoicismo o torna popular. “As pessoas continuarão a buscar respostas para seus anseios pessoais e existenciais em doutrinas filosóficas mais palpáveis. O fato de o estoicismo ser baseado na prática vai ao encontro das necessidades impostas por um ritmo cada vez mais acelerado de vida”, diz. “Me parece que abordagens mais pragmáticas como essa seguirão em alta entre os leitores por muito tempo.”

A época em que vivemos também faz toda a diferença. “Talvez em tempos mais estáveis, como foi a segunda metade dos anos 2000, as pessoas se voltassem para questões existenciais, e em momentos de mais instabilidade, como agora, elas procurem ferramentas mais práticas para o dia a dia”, acredita Bolite.

O professor da USP lembra o evento histórico, traumático e monumental pelo qual todos passamos e cujos reais impactos ainda levarão tempo para ser medidos e assimilados. “A pandemia [de Covid-19] produziu em muitas pessoas uma percepção mais clara da brevidade da vida, uma questão muito explorada pelos estoicos”, diz Bolzani. “No estoicismo, a vida humana só faz sentido do ponto de vista de um todo mais amplo, a natureza. O sábio estoico entende que é ape- nas uma parte pequena de um todo maior. Isso lhe proporciona as condições para viver uma vida de autodomínio em relação aos sofrimentos do cotidiano.”

Não por acaso, as buscas por estoicismo no Google começaram a subir em março de 2020, quando o mundo se fechou para enfrentar a Covid-19. Em 2023, o número de pesquisas já tinha dobrado. Só que isso não quer dizer, necessariamente, que existe um in- teresse mais aprofundado pela filosofia. “É mais provável que a maioria das pessoas esteja apenas em busca de uma saída para suas aflições pessoais”, observa Bolzani.

Os livros mais populares dessa onda não são grandes tratados de filosofia, afinal. Diário Estoico, por exemplo, é um compilado de 366 pequenas lições, uma para cada dia do ano. “Não há nada de errado nisso, mas fica claro que, nesse caso, assistimos a um fenômeno frequente: o da instrumentalização do pensamento, uma espécie de transformação da filosofia em produto de consumo”, acredita Bolzani.

Se vale para os livros, vale mais ainda para a proliferação de vídeos sobre estoicismo nas redes sociais. Só no Instagram são 1,2 milhão de posts com “#stoicism”, no termo em inglês. “O ‘estoicismo de TikTok’ promete produtividade e felicidade”, escreveu o filósofo Matthew Duncombe, da Universidade de Nottingham, no Reino Unido, em artigo no site The Conversation. “Felicidade, para o estoico, era uma questão de ter virtudes e não ter vícios. Todo o resto — incluindo saúde, riqueza e status — eram ‘indiferentes’, porque não faziam diferença para a virtude e, portanto, para a felicidade”, explicou. “Então, mesmo que os conselhos de autoajuda do ‘estoicismo de TikTok’ possam torná-lo mais produtivo, ser mais produtivo não o deixará mais feliz, de acordo com a filosofia estoica.”

Até porque seguir os ensinamentos estoicos, sem mergulhar no pensamento filosófico para valer, não é fácil. Que o diga Cômodo, filho e sucessor de Marco Aurélio: ele rasgou e jogou para o alto a apostila de autocontrole, dever e respeito ao próximo pregada pelo pai. Tornou-se um ditador apegado à própria imagem, sanguinário e fanático pelas lutas de gladiadores. Morreu assassinado.

Galileu. 20.4.2024.