Na estrada, falando de assuntos aleatórios, eu e meu interlocutor fomos a algum lugar do passado.

Ele começou a contar quando era criança: a convivência com irmãos e primos, o tio e a tia, a comida que ajudavam a tia a preparar, o sorvete depois da refeição… Boas lembranças compartilhadas.

Fui lembrando de coisas que fazia também com meus irmãos e primos. Com minha mãe, tia e avô. E eis que ele se destacou no cenário dessa vez. Talvez porque, à medida que envelheço, pareço me identificar com ele. Para algumas coisas sou extremamente séria, todos podem rir a respeito de algo e eu – por estar distante ou sem entender ou simplesmente por não achar graça – permaneço séria e sequer estico os lábios para esboçar um breve riso. Nessas horas, lembro do meu avô. Quando estava descontente com algo, se levantava e dizia: “teve bom”. Saia discretamente e se retirava.

Meu avô era um observador, hoje percebo.

Ele era tão quieto e de repente surgia na cena para repreender uma atitude inadequada entre nós, crianças: um palavrão dito por um dos meninos, um passo ingênuo em algum lugar que pudesse ocasionar uma queda… Meu avô era tão diferente, era tão ele.

Quando estávamos – eu, meus irmãos e primo – lá em casa, brincávamos a tarde toda e de repente batia uma fome. Os pés avermelhados de brincar na rua ou no terreiro  (o terreno era enorme porque a casa era pequena e a terra vermelha do oeste do Paraná coloria nossos pés) iam se aproximando do vô com passos interessados, porque ele daria alguma instrução. Ele pegava um saco de laranja, começava a descascar a fruta e quando terminava, sorria e a oferecia esticando a mão, às vezes, sem dizer uma palavra. Sempre era aceita a laranja que meu avô descascava até uma parte que não chegava ao fundo da fruta. E eu apertava com muita força para que o suco surgisse, mas não tinha sucesso. Eu não pedia para ele descascar até o fim, mas minha mãe que observava de longe ria e com suas mãos oportunizava mais sabor a minha laranja.

Só tínhamos noção do quanto apreciávamos as laranjas quando ao lado da cadeira de cordinhas do meu avô tinha uma montanha de cascas e nós ríamos da cena. Meu avô sorria com nossas conversas temáticas: “Quantas laranjas o vô consegue descascar? O vô é rápido, ele não se corta…” E assim a conversa ia até que a gente enchia bem a barriga e conseguisse retomar a brincadeira.

Nossa casa era parte de alvenaria, parte de madeira, em volta dela havia árvores frutíferas, mas algumas não tiveram sucesso. Nunca tivemos jaca e laranja das nossas árvores e eu passei um bom tempo sabendo que existia uma fruta chamada jaca, mas sem conhecê-la. Quando conheci, o cheiro não me agradou. Eu não sabia o nome disso na época: expectativa e decepção. A infância nos oferece suas lições para a vida toda, além de boas lembranças.

O cheiro da laranja e de suas cascas em espiral numa harmonia entre mão, faca e fruta; o cheiro daquela terra em que brincávamos; o cheiro da folha do pé de laranja que nunca deu frutos; as risadas coletivas; as mães chamando; o vô com sua voz rouca e baixa que eu tinha dificuldade em entender… Um cenário de felicidade vivido e lembrado, que hoje não poderia estar completo, não teria o mesmo cheiro. A terra não estaria grudada em nossos pés. 

São outros tempos, somos outros de alguma forma mesmo sendo os mesmos, não estariam todos os de antes. Mas as memórias em torno da montanha de cascas de laranja estão vivas e nos fazem viver também.

Que as nossas crianças possam ter boas recordações de sua infância, porque são elas que nos fazem esperançar revivendo os momentos de felicidade.

Gisele Souza Gonçalves. Professora e Doutora pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Mãe. Colunista do Factótum Cultural.

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