por Charles Santiago e Libiane Orth

Por um tempo, ao lado de Libiane Orth, escritora, provocamos, com ficcionalidades, de forma filosófica e literária, os leitores e leitoras da Revista Factótum Cultural, projeto audacioso do querido amigo e irmão, Neemias Prudente.
Nossa intenção, para além de tomar cerveja e filosofar gostosamente em boa presença, era demonstrar o quão hipócrita é a sociedade que, nos dizeres de Bukowski, insiste em aprisionar o seu pássaro azul.
É certo que, em um breve período, travamos aventas de botecos e em botecos para melhor compreender a condição humana e materializá-la em forma de escrita, mais do que isso, pautar a ficcionalidade e sua função na constituição e sustentação do eu real, como nas palavras de Lacan: “o ser humano se revela na sua loucura, pois a loucura é o limite da liberdade”.
Mas, é digno de nota, contrariando o senso comum, aquele que sustenta a impossibilidade de relações afetivas e fortes entre homens e mulheres, podemos categorizar que não somos somente amigos, mas almas peregrinas que vão quixoteando mundos pelo mundo, cuja tentativa é a salvação de nossa verve existencial.
Nós não só bebemos em botecos dos mais variados, como proseamos sobre os dramas humanos e escrevemos unidos. Nos últimos dias, cruzamos os caminhos da atividade esportiva como ciclismo, corrida de rua e o Kung Fu, arte marcial chinesa.
Nesse orbe, longe da ficcionalidade e dos botecos, em um dia normal de treino de boxe chinês, presteza que acontece nas terças e quintas com o impoluto professor Lucas Alves, persona de grande estima e de generoso coração, propomo-nos, como desafio, participar de um campeonato de luta marcial, ou seja, sem qualquer experiência no assunto, enfiar-nos em um ringue e desferir socos, chutes e quedas com alguém que sequer conhecemos.
Decerto que o desafio, no primeiro momento, pareceu um acontecimento espirituoso e sem qualquer sentido: uma brincadeira de espectros inquietos que buscam na atividade da arte chinesa retirar do corpo as doses etílicas de amplas farras e conforto para ressacas matinais.
Ah, minha gente! Embarcamos em uma aventura que, com certeza, estava para além de queimar calorias e curar ressacas, quer dizer, adentramos em um mundo mágico: a prática filosófica da arte do Kung Fu, especialmente, ao lado do Mestre Rafael Vidal e do professor Lucas Alves.
Com os nossos nomes inscritos no campeonato de boxe chinês, já inseridos na arte da luta marcial, convictos de uma grande façanha, as palavras de Sêneca faziam sentido: “a vida é um ato de coragem. O seu sentido não se reduz à duração cronológica do tempo, mas na excelência de viver a intensidade que o momento reclama”.
Aos poucos, entre uma aula e outra, percebemos que não se aventava somente de treinar e praticar a arte do boxe chinês como atividade física, era também de compreender, por meio da práxis esportiva, que o corpo não é somente uma carcaça a ser usado como instrumento de luxúria, mas, para além disso, é uma paragem que aquieta corações ansiosos e tranquiliza almas rebeldes que penam com as dores do mundo.
É sabido que a Divisão de Extensão da Universidade Estadual do Paraná, Campus de União da Vitória, abriga projetos que usam da arte marcial, o Kung Fu, como ferramenta de socialização, cidadania e de inclusão social.
Outrossim, aprendemos, ao lado de profissionais como Rafael Vidal e Lucas Alves, que além dos já mencionados resultados da arte chinesa, existe uma filosofia que norteia essa atividade milenar, a saber, outorga condições para lidar com os dilemáticos desafios do cotidiano: os medos, as frustrações e, sobretudo, com os limites que assombram a existência humana.
Assim, no dia de amanhã, em um domingo diferente de qualquer outro, realizaremos o desafio, aquele que nasceu de um divertimento e tornou-se uma travessia de sabenças, subiremos ao ringue e pelejaremos, nos moldes de Quixote, com bravura, e cientes de uma peripécia cervantina.
No processo de treino, foi possível apreender que não se trata de ganhar ou de perder no interior do ringue, mas de ofertar ao nosso corpo um adversário que alimenta o mesmo propósito, dar o melhor de si, aquilo que foi, cotidianamente, planejado e executado. Todavia, nunca é demais dizer que o destino é, conforme Machado de Assis, previsível, e “não se luta contra ele; pelo contrário, o melhor é deixar que nos pegue pelos cabelos e nos arraste até onde queira alçar-nos ou despenhar-nos”.
Por isso, no embate que acontecerá no domingo, lembremo-nos do velho Cervantes: a travessia é sempre melhor do que a paragem. O caminho trilhado é nossa vitória: sabemos das memórias construídas; os risos alargados que ultrapassaram o tatame, o cansaço curado com chopp gelado, tantas histórias construídas ao longo e depois dos treinos…
Amanhã, dentro do tablado, o medo, aquele que retira de homens e mulheres o direito à aventura, não deixará de nos angustiar, mas, cerceado pelas cordas e ombreado com o nosso adversário, que as palavras de Quixote façam sentido: “um dos efeitos do medo é perturbar os sentidos e fazer que as coisas não pareçam o que são”.
Por último, queremos com a prosa, ansiosos com o dia de domingo, celebrar com as amigas e amigos o direito de quixotear mundos no mundo, mesmo que pareça banal ou impossível. Não duvidamos dos limites que a vida nos impõe, mas, como nas palavras de Belchior: cada dia “é outra viagem, e o meu coração selvagem tem essa pressa de viver”, viver o domingo, aguardar a segunda para que outros desafios se constituam e ofertem sentido para a brevidade que os deuses nos impõem.

Libiane Orth, escritora e Colunista do Factótum Cultural.

Charles Santiago, autor de Filosofia de Boteco e Colunista do Factótum Cultural.
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