por Charles Santiago e Libiane Orth

Para Antonio Cândido, expoente intelectual brasileiro, literatura é tudo aquilo que contempla a poesia, a ficção e a dramaticidade da existência social. É, também, aparição de protesto, construção e travessia para reconexão do demasiado humano: a vida ideal, real, ficcional…

Incorrendo no contrassenso, pensar livremente, especialmente no tempo atual sobre literatura, propomos, com carinho, no escrito em curso, uma apurada reflexão: o que dizer do pássaro azul de Charles Bukowski?

Eis o que nos diz o artífice:

há um pássaro azul em meu peito que quer sair, mas sou duro demais com ele, eu digo, fique aí, não deixarei que ninguém o veja”.

Não é segredo que este autor, o avelhantado safado, achincalhava, demasiadamente, na vida cotidiana, do sexo, do tabagismo e do álcool.

Pois bem, tomados por uma comiseração de utilidade, ao ler o pássaro azul, tendo como referência a biografia do autor, podemos objetar à consequente conclusão: O sujeito lírico, por medo de suas paixões, faz da volúpia, do cigarro e do álcool alamedas de fuga para evitar a exposição do seu eu ideal.

Pode ser que sim, o texto, de fato, versa de uma tragédia em que o seu autor esconde, na sua intimidade, grandes emoções: o pássaro azul é o que não pode ser desvelado em sua totalidade:

“só o deixo sair à noite por vezes quando todos estão a dormir”.

Um psicanalista, conduzido por um anseio de interpretação utilitarista, certamente arriscaria dizer que o pássaro azul é somente o desejo cativo, especialmente, na cachola de um súdito ousado, mas tímido o suficiente para não deixá-lo aflorar no mundo real.

Um filósofo, uma vez convidado a responder sobre a querela, o pássaro azul, o que exporia?

É possível, como revide, sobretudo, a partir de uma perspectiva nietzschiana, tratar-se de uma persona apegada às coisas do mundo, mais do que isso, escravizada de seu passado. É uma boa hipótese, já que, nas letras de Zaratustra, personagem capital de Nietzsche, “inocente é a criança, é também esquecimento: uma roda rodando por si mesma, um sagrado dizer-sim”. A citação se refere às transmutações do espírito: camelo, leão e criança.

O pássaro azul, nas lentes de um religioso, é o estereótipo do pecador, que teme confessar a sua perversidade e, por isso, é dilemático consigo mesmo, pois esconde o que há de mais natural, a vida e suas transgressões.

Esqueçamo-nos, por hora, do psicanalista, do filósofo e do religioso, uma vez que, ao seu modo, todos flertaram com o problema alvitrado, o pássaro azul, à luz de certa racionalidade e responderam dignamente a partir de seu oficio.

Queremos, com esse colóquio, convidar você para aventurar-se na arte literária, mais do que isso, a ficcionar, nos moldes de Quixote, sobre o seu pássaro aprisionado:

O que tu não queres desvelar? Quão profanos são os teus desejos?

Na tentativa de arrazoar o que pensara o velho Bukowski, esquadrinhamos um boteco, o melhor dos sítios, e ali, entre um gole e outro da aguardente que nunca sacia, no balcão dos poetas, lugar de narrativas raras e conversas improváveis, líamos e relíamos o poema com muita gula, buscando, livremente, uma afetuosa interpretação: “há um pássaro azul no meu peito que quer sair”.

A cena merece traço: o boteco lotado, mas o garçom não deixava de nos espiar, escondendo o riso e com certo ar de estranhamento gracioso. Ao som de Belchior, poeta mais arretado do nordeste, ele desconfiava de nossas intenções. Todavia, como todo bom garçom, personagem capital de um bom boteco, servia-nos com presteza o líquido dionisíaco.

O estranhamento do garçom é justificável, pois, embriagados, livres o suficiente, diferentemente de todos os demais frequentadores daquele ambiente, enquanto um, em voz alta, lia o texto, o outro, de olhos esbugalhados, seguidos de um trago etílico, buscava a mais singela interpretação do pássaro azul à luz da sonoridade e do sotaque dados ao texto.

E, é digno de nota, por horas a fio, entregamo-nos de corpo e de alma aos devaneios da poesia do velho safado, mais do que isso, convivemos o boteco, isto é, ali, entre um gole e outro, a literatura nos ensinava que a vida era somente aquilo, o momento presente, a existência como deve ser: improvável, finita e poética, como nas palavras do saudoso Gonzaguinha: “somos nós que fazemos a vida como der, ou puder, ou quiser”.

Com o boteco lotado, assim como estariam, naquele momento, os lupanares e os templos de todo credo, já que cada indivíduo, ao seu modo, a partir de suas frustrações existenciais, busca cura para aquilo que é insanável, as dores do seu mundo: a palavra não dita, a opinião não manifestada, o convite não aceito, o tempo já passado…

Em um dado momento da atividade botequiana, aquela de saborear Bukowski e sorver álcool ao som de Belchior, como numa epifania, a moça de olhar agateado, com o sorriso molhado, maneira bastante singular, com um sotaque dengoso, entorpecida de poesia e cerveja, disse-me:

O texto expressa, na sua totalidade, a hipocrisia dilemática do humano”.

Como de costume, tratando-se de uma prosa literária, requeri que ampliasse o seu argumento, mais do que isso, que facilitasse minhas inquietações.

Decerto que a assertiva era compreensiva, mas, num boteco, já embriagado e perdido em intensa beleza, os pensamentos não acompanhavam os desejos da carcaça que exalava lubricidade: chamegar, gostosamente, como nas palavras de Alceu Valença, “se amar como dois animais”. Eu queria, no fundo, era ouvi-la e vê-la em sua plenitude: “ser, somente ser o que ela é, ficcionada à liberdade: alforriando os seus pássaros aprisionados”.

O que leva, de fato, as asas cor de anil condenadas à lassidão permanente suportarem tamanha tortura?

Talvez a resposta esteja onde desenvolvemos nossos pensamentos com mais liberdade e desejo: aprisionando o nosso pássaro azul…

Provocada por mim, a mais bela daquele recinto, o bom boteco, como num ato cênico, esvoaçou os cabelos, com o hálito suave, os pelos reluzentes e fofos, articulando, meticulosamente as mãos, franzindo a sobranceira dourada prolongou a confabulação:

Não somos capazes, nem mesmo o velho safado, de lidar com o poder da liberdade, já que, nas palavras do Sartre, o nosso inferno é o outro! Vivemos em função do olhar alheio, do julgamento alheio e por isso aprisionamos os nossos pássaros. Este é nosso drama, nossa hipocrisia. Vários são os pássaros que escondemos! Por certo, não verbalizar o desejo, protrair encontros limitando as suas experiências têm efeito de pássaro cativo.

Houve, depois dessa breve narrativa, um silêncio curto para mais um trago de cerveja. E, na sequência, arremedou com os lábios frescos e umedecidos:

De início é como adiar o prazer, e isso é intencionalmente excitante!

E por fim, disse ela:

Nesse exato momento, ouço meu pássaro enclausurado entoar intensamente suas lamúrias. 

Versando sobre os seus dramas, disse ela, cabrocha de alma inquieta, não se trata somente de libido censurada. Somos movidos pelas angústias e frustrações de nossas experiências não consumadas.

De copos já vazios, fomos socorridos pelo nosso fiel amigo, o garçom que nos brindou com mais uma cerveja. Nesse suntuoso momento, como quem quisesse agradecer o feito daquele que tão bem nos atendia, versou solenemente de forma melodiosa:

É possível, em algum momento, construir um mundo paralelo, restrito, sob o delírio de ser quem quiser, saciando suas demandas intransferíveis, voltar e “começar tudo de novo no dia seguinte”.

Impossível seria, para aquele que tendo descoberto tal acesso ao tempo de gozos e aventuras quixoteanas, a partir do mundo ficcional, não tornar à normalidade menos insano ou mais feliz.

Toda essa reflexão, colocou-me a pensar sobre a intensidade das nossas relações mundanas, em que vida real e ficcional coexistem e se completam, de fato. Se existe uma necessidade, logo, ela pode ser atendida em um desses mundos.

Acomodado com suas palavras, como não trazer Nietzsche para a nossa prosa? Já que, de acordo com esse filósofo, nosso corpo e sexo são constantemente oprimidos, por vezes, pouco explorados, quando deveriam ser apenas vividos, sem censura. Nascemos do sexo, ansiamos a liberdade de vivê-lo plenamente e, de forma repentina, permitimos que um outro interdite os nossos devaneios. Parte de nosso sofrimento é, justamente, a entrega da gestão de nosso tempo, nossa carcaça a quem nele não habita.

Extasiado com os pensamentos da consorte de escrita, mesmo confuso com os sentimentos que dominavam a mesa do boteco, buscando cena, com impostação vocal, arroguei com tom magistral:

Não interditemos os nossos gozos!

Não se trata de capricho, mas é bom dizer: ali, embriagados e livres, ficcionados, com minha assertiva, eu contemplava o seu silêncio provocativo, mas capitava, por meio de seu olhar misterioso, uma pouco de sua alma.

Bastante encantado, na verdade, empolgado com seu estilo, aquele de mirar o momento, semelhante a um bom garçom, concedendo-me os ouvidos, chamei Lacan para a conversa: “por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis”. Por isso, autorizado pelo nosso mestre da psicanálise, como sujeitos livres, não interditemos os nossos gozos!

No sentido kantiano, o momento fora sublime! Seus olhos, feitos gudes verdes, brilhavam. Seus dentes, arreganhados e brancos, buscavam o melhor sorriso. Seus cabelos, embaralhados, sinalizavam um caminho seguro. Seu corpo, paralisado, perseguia meus sentimentos. Tudo isso acontecendo em um espaço de tempo não contabilizado pelos nossos pares, uma espécie de refúgio, quase um ciclo vicioso entrelaçando o ficcional com o real.

O pássaro azul, tantas vezes lido naquele balcão sujo, era somente uma desculpa literária para viver o momento presente, a busca do sublime kantiano. Ali, entre um gole e outro do malte etílico, certeiros como amantes ficcionais, eu, conduzido por Belchior, oferecia pistas de liberdade para o meu pássaro azul: “meu bem, vem viver comigo, vem correr perigo, vem morrer comigo! Talvez eu morra jovem em alguma curva do caminho, algum punhal de amor traído completará o meu destino”.  

Charles Santiago, autor de Filosofia de Boteco e Colunista do Factótum Cultural.

Libiane Orth, escritora e Colunista do Factótum Cultural.

Os artigos publicados, por colunistas e articulistas, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Factótum Cultural.

Tendência