por Charles Santiago

No último texto, aqui publicado no Factótum Cultural, em resposta a uma amistosa leitora, convidei uma amiga, na verdade, mais do que isso, uma interlocutora de literatura e das coisas da vida, moça de olha gateado que, para além de sua graça singular, entendedora e, como ninguém, os dramas existenciais: a brevidade da vida e, por isso, cada momento, na cachola dela, carece ser único, intransferível…

Decerto que, alguns leitores, por desaviso ou falta de entrosamento literário, creram que, no texto da discórdia, pesamos a mão, ou seja, atentamos, com críticas avexadas, contra a instituição matrimonial. Pode ser que sim, mas, também, pode ser que não, pois assim deve ser compreendida a literatura: como possibilidade e perspectiva para a inutilidade, assim como para a utilidade.

Pois bem, presentemente, dezoito de fevereiro, sábado de carnaval, embalado por um sentimento fraterno e de alegria, retomo as páginas do Factótum Cultural, projeto audacioso de um irmão de farra e filosofia, Neemias Prudente, nietzschiano de alma rara, para declarar palavras sinceras a duas grandes impolutas personalidades, Letícia e Jair. Isso porque, no dia de hoje, celebram uma união, mais do que isso, nesta data, entrelaçam suas almas para trilhar um dilemático caminho: a vida a dois.

Ah, gente! É sabido, como disse Eduardo Galeano, que vivemos a cultura da aparência e, por isso, de acordo com ele, “o contrato do casamento importa mais do que o amor”, a paixão…

 Eu sei que as palavras de Galeano não alcançam a relação de Letícia e Jair, pelo contrário, o amor que os dois nutrem, anunciam, inexplicavelmente, por meio de um simbolismo, a crença na paixão que um casal é capaz de viver, independentemente de quaisquer contratos.

Assim, meus votos são, como propósito, que vivam intensamente o que já são em essência, bons amantes, e que o ato, hoje aqui solenizado, seja somente uma festividade, uma data no calendário familiar para representar protocolos culturais. Entretanto, é meu desejo, não mudem a forma como são: eternos namorados.

Decerto que o matrimônio é uma instituição em que se devotam vidas e, nesse caminho de incertezas, já que os sentidos se fazem na paragem das arestas, nos contratos inegociáveis, mas com amplos prazeres, trago um questionamento para o casal, inquirição que não é minha, mas do velho bigodudo, o pensador Nietzsche:

“Quando se casa, é preciso se colocar como questão capital: você, homem ou mulher, gostaria de conversar com esta pessoa até a velhice? Pois, tudo mais no casamento é transitório”.                                                                                                                                                                        

Eu, mais do que ninguém, amigo pessoal e conhecedor da relação entre os noivos, posso dizer com toda franqueza do mundo: Jair e Letícia vivem um para o outro, não como um fardo, pelo contrário, uma espécie de benção divina outorgada a poucos casais.

Afirmo ainda, que um não vive sem o outro, não no sentido físico, pois, um dia a morte há de separá-los, digo no sentido da paixão, irmã siamesa do amor, em que seus corpos se locupletam e promovem o que há de mais belo numa relação, a fundição de dois corpos, duas almas e um só desejo: a imbricação de duas vidas em uma só travessia: a felicidade.

Ainda com relação ao último texto, aquele tão mal interpretado, minha interlocutora chameguenta me disse o seguinte, em resposta à querelante sobre o casamento e sua monotonia:

– “É isso, o casamento é um encontro em que a alma, pressionada pela cultura monogâmica, faz o desejo do amado, é prisioneira de um mundo a dois, em que corpos são condenados à rotinização de vidas vazias, fugazes…”.

Não discordo, pois sua compreensão é assertiva, e, para além disso, como tergiversar a uma ideia tão singular?

Todavia, com todo respeito a minha companheira de escrita, ofereço outro escólio, sobretudo, para o momento presente, o ajuntamento de duas almas que buscam, unidas, eternizar memórias para os amantes do mundo, viver intensamente o momento presente, encontrar felicidade nos detalhes, inclusive, nos mais simples possíveis como apreciar uma noite estrelada, namorar sob um céu enluarado, abraçar, silenciosamente, e ouvir, na beira de um rio caudaloso, o dançar das águas que faz como se contemplassem, naquele exato momento do abraço, o casal que entende a brevidade da vida, mas que é, nesse curto tempo, o momento insubornável, dádiva para os grandes amantes.

Minha interpretação, diferentemente da moça de riso largo, de olhos flamejantes e de rara beleza, encontra respaldo em Platão, pois conforme o grego, o casamento pode ser um encontro de almas em que o amor é semelhante “ao coração que canta uma música, incompleta, decerto, até que outro coração, aquele conquistado, sussurra de volta”, compondo uma grande melodia.

Nesse sentido, tocados por esse sentimento, o casal se torna músico, a vida perde sua rotinização e o cotidiano torna-se, mesmo com todos os dilemas existenciais uma poesia que torna leve o viver humano.

Desse modo, como testemunha desse amor incondicionado, quero, no dia de hoje, deixar como mensagem, para além das minhas felicitações, versos de alguém que os ama como grandes e bons amigos:

  1. Que o caminho seja leve, mesmo com as durezas do casamento. Sejam amigos da felicidade, aquela que se encontra na simplicidade do cotidiano. Para isso, observem as palavras de Belchior, o poeta mais arretado: “um beijo é o bem do corpo em paz que faz com que tudo aconteça, e o amor que traz a luz do dia e deixa que o sol apareça”.

É justamente isso: a felicidade ronda os casais e, muitos, não a percebem. Veja, nos versos do poeta do nordeste, um beijo, somente um beijo é o bem do corpo. Ele, no ajuntamento de bocas umedecidas, faz com que tudo aconteça, isto é, nas dores, sequenciadas por noites tristes, traz a luz do dia, faz com que o sol apareça e que a vida, presente divino, siga seu curso.

  • 2. Busquem, juntos, o gozo em tudo. O sofrimento de casais, por vezes, é justamente o gozo interditado: a palavra não dita, a discussão não terminada, a fantasia não realizada. A máscara que somos obrigados, na relação com o mundo, a sustentar para satisfazer a cultura do matrimônio.

E quando tudo isso acontecer, se abracem e, tomados pelo aconselhamento de Belchior, digam para a vida, “vida pisa devagar, meu coração, cuidado, é frágil”. Todos nós somos frágeis e, por vezes, a vida é cruel, quebra-nos com imposições, culturas e crenças. Entretanto, é preciso força, para que a dureza da vida não seja castração de nosso gozo. Para Jaques Lacan: “Só o amor permite ao gozo condescender ao desejo”, o desenho de uma vida suportável, com grandes prazeres e memórias.

  • 3. Por último, tenham do Quixote, o velho mais louco da história, um bom aprendizado:

“sonhar o sonho impossível, sofrer a angústia implacável, pisar onde os bravos não ousam, reparar o mal irreparável, amar um amor casto à distância, enfrentar o inimigo invencível, tentar quando as forças se esvaem, alcançar a estrela inatingível”, mas nunca desistir, pelo contrário, os monstros cotidianos, aqueles que inventamos no interior de nossos lares, são somente moinhos.

Por isso, querida Leticia, amiga das boas, nesse dia de felicidade, a celebração de um contrato, sejas tu uma crente nos moldes de Quixote, sobretudo, quando alguém ousar saber o que é o amor. Nesse dia, ele há de acontecer, somente repita o velho quixote:

“Quando você realmente amar alguém e for recíproco, você vai ver como é bom amar. Pra amar não precisa namorar e blá-blá-blá, mas o namoro é a melhor forma de expressar o sentimento, quando você sentir suas pernas tremerem, sua barriga gelar, teu corpo ficar mole, aí sim você vai entender a magia de amar”.

Quanto a ti, Jair, expresso o seguinte: foste tu que me recebeste por primeiro como amigo nas terras do Paraná, mais do que isso, ofertou-me outros companheiros de amizade, como João, Renan, Jonas e tantos outros. Quero, dito já acima, felicitar-te, meu amigo, pelo casamento, pela amizade, pelo companheirismo e, acima de tudo, pelo tamanho de seu coração.

Espero, verdadeiramente, que não nos falte tempo para bebidas etílicas e grandes encontros. Por último, tenha, também de Quixote, uma sinalização para dias felizes: “que teu descanso seja batalha” para assegurar o que há de mais nobre em vocês, o entrelaçamento apaixonado de viver uma paixão tão singular. E, como última palavra, os versos de Belchior: “o amor é uma coisa mais profunda que um encontro casual”.

Charles Santiago é filósofo, professor e escritor. Colunista da Factótum Cultural.

Os artigos publicados, por colunistas e articulistas, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Factótum Cultural.

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