Recomendação das Almas: Cantos de libertação
por Renan Rodrigues Rosa

A comunidade quilombola de João Surá localiza- se a 50 quilômetros da sede do município de Adrianópolis, região do Alto Vale do Rio Ribeira do Iguape, na fronteira entre Paraná e São Paulo, nas áreas compreendidas pela confluência do rio Ribeira com o rio Pardo e os limites do Parque Estadual das Lauráceas (MOURA, 2005).
O quilombo foi constituído, originalmente, por escravizados que fugiram da região do vale do Ribeira, os quais foram trazidos à região apoiando- se no incentivo à mineração e posteriormente, pela agricultura. Dessa forma, a busca pela liberdade encontrou na região de difícil acesso um local para a constituição da comunidade.
As práticas religiosas mais comum na comunidade Quilombola de João Surá são: As Recomendações das Almas, Bandeira do Divino Espírito Santo, Romaria de São Gonçalo/ Dança de São Gonçalo e o Curandeirismo (uso de ervas medicinais), que são um marco de cultura e devoções na comunidade em datas festivas de população negra, e podemos notar um forte elemento da Filosofia do Ubuntu, com ênfase à solidariedade, igualdade e coletividade, desde o pagamento da promessa que é feita no individual, mas paga no coletivo. Aqui poderíamos comentar sobre todas as práticas religiosas da comunidade, mas vamos abordar uma única prática religiosa: As Recomendações das Almas no incentivo à visibilidade, combatendo o preconceito, a intolerância religiosa, associações às práticas negativas e mostrar o verdadeiro significado através de tantos ritos e devoções.
As recomendações das Almas é uma prática religiosa que reside e re-existe no território da comunidade Quilombola de João Surá, devido ao seu processo histórico há mais de 200 anos, são cantos e vozes de anciões que ecoam uma sabedoria de fé às almas que necessitam de uma libertação espiritual, libertação que só através das vozes, cânticos e pronúncias geram o ato e o efeito de recomendar. Segundo Hampaté Bâ (2010), “os anciãos são guardiões da herança oral africana e suas tradições ou fazedores de conhecimento”.

Fonte: Paraná Negro
Conforme o relato de Cassiane Aparecida de Matos, moradora da comunidade, quilombola, filha, neta, tataraneta de cantadeiras de Recomendação das almas e Romaria de São Gonçalo nos afirma:
“A recomendação das almas é realizada durante a quaresma, no período noturno, onde os capelães saiam pela comunidade com seus fogareiros e luzes de velas. As famílias que desejassem a recomendação deixavam uma cruz na frente da casa para sinalizar ao capelão, essas moradias não podiam estar com as luzes acesas e a família ficava em silêncio em sinal de respeito, ouvindo as orações e os cantos, não podiam olhar pelas frestas ou pelo buraco da parede, e ao final da oração acompanhavam o grupo se quisessem. Além de recomendar em frente às moradias das famílias quilombolas, os capelães tinham os pontos fixos para fazer a recomenda, não podiam deixar de recomendar nos cruzeiros que ficavam na beira dos caminhos ou estradas, na igreja e também no cemitério da comunidade”.

Fonte: Paraná Negro
Diante do exposto acima podemos perceber uma forte ligação da ancestralidade com a filosofia, ancestralidade que deixou a sua herança ancestral, que no ato de recomendar e se pronunciar ecoam as vozes e pronúncias de um cântico de libertação, cânticos que expressam a religiosidade de uma linguagem e pronúncias dos quilombolas, trazendo um filosofar com a terra e ao mesmo tempo um convite para conhecermos/reconhecermos o chão que hoje pisamos, e isso Luiz Rufino, em sua obra Vence Demanda, nos traz uma belíssima reflexão: “Chãos que sustentam aldeias, que se inventaram terreiros, nos quais se enterram os mortos e os cordões umbilicais, onde se escavaram histórias antepassadas e se cultiva a esperança da semeadura de um novo tempo”. Tempo de nos conectarmos com o nosso chão, fortalecer as nossas raízes e cultivarmos a semeadura ancestral.
Referências Bibliográficas
HAMPATÉ BÂ, A. A tradição viva. In: Ki Zerbo, (org.). História geral da África I: metodologia e pré- história da África. Editado por Joseph Ki-Zerbo.-2.ed.rev.Brasília: UNESCO, 2010. p. 167-212.
MOURA, G. Direito à diferença. In: K BENGELE, M. (org.). Superando o Racismo na escola. 2 ed. Brasília: Ministério da educação, Secretaria de educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.
RUFINO, Luiz. Vence Demanda, educação para descolonização. Rio Janeiro: Mórula 2021.

Renan Rodrigues Rosa, Professor no Colégio Estadual Quilombola Diogo Ramos. Graduado em Filosofia e Sociologia. Pós-graduado em Educação do Campo, Educação Especial Inclusiva, Psicopedagogia com Ênfase em Educação Especial, Ensino de Filosofia e Sociologia e História e Cultura Afro-Brasileira.
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Muito bom !!
Importante marcar a existência e resistência destas tradições.
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Sou de João sura, onde o quilombo é a resistência de um povo, um território de vida
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Parabéns!! Excelente conteúdo para ser abordado, onde muitos ainda não conhecem a cultura desse povo resistente e lutador.
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