Há tempo para a literatura? Uma leitura de reminiscência em Relato de um certo oriente, de Milton Hatoum
Por Karine Bueno Costa

Em uma busca rápida sobre o significado de reminiscência, há muitas definições. Como uma recordação que se guarda de modo inconsciente; capacidade de guardar e reconstruir ideias, conhecimentos, impressões adquiridos anteriormente, memória; 3. recordação vaga, lembrança quase apagada; recordação ou lembrança sem reconhecimento; característica inspirada por uma influência que não é totalmente consciente na criação artística ou, então, na filosofia: “forma mítica do racionalismo”, em Platão (filósofo grego, 428 – 348 a. C.), segundo a qual todo o poder de conhecer a verdade é a recordação de um estado antigo em que, vivendo com os deuses, se possuía uma visão direta e imediata das ideias. Enfim, um lapso de memória.
Esses dias, lendo o último texto do colunista Álefe Nícolas Carvalho, deparei-me com o questionamento se essa geração é sem memória. Foi pensando nisso, que comecei a refletir sobre como a literatura nos faz parar e é pausa no meio do caos da conjuntura contemporânea e um exercício de reminiscência, uma forma de termos memória. Lembrar é resistir e o mundo literário nos permite resistir. Como disse Milton Hatoum, em entrevista ao Nexo Jornal: “Nosso tempo é da pressa, do espetáculo, não é o da literatura, mas a literatura é uma forma de resistência a tudo isso”. Em tempos de áudios acelerados, ler e fazer literatura é uma forma de resistir ao fluxo constante de uma vida em prol dos relógios e a maneira de construir registros.
Essa tentativa permeia o processo artístico da obra de Milton Hatoum, em obras de resgate memorialístico. Na releitura da obra Relato de um certo oriente, detive-me ao fato do escritor amazonense nos apresentar Manaus em lapsos de memória das personagens narradoras, que relatam sobre o passado, dramas familiares e segredos de uma família de origem libanesa, e, por ser uma obra de memórias, de reminiscências, de retalhos de vozes, faz com que tentemos captar o tempo que passou e compreender por meio das lembranças o presente, como tentativa de nos entendermos como ser de histórias no mundo.
Por meio do gênero epistolar, o romance é marcado por vozes, relatos que tentam por meio de imagens memorialísticas resgatar a história ou desvendar segredos de outrora. Nesse viés, a literatura fala de passado para ressoar no presente. Contudo, fiquei indagando como será contar história ou resgatar ancestralidade pós sociedade líquida? Na obra de Hatoum, a história se monta com cartas, relatos e fotografias, material concreto e sólido, o que auxilia na construção dos retalhos memorialísticos. A protagonista, sem nome, resgata a vida da matriarca árabe, Emile, para se entender como indivíduo no mundo, por meio de sua história. Embora muito se perca no passado e que nenhum segredo seja desvelado por completo, consegue, como uma colcha de retalhos, tecer um relato memorialístico. Mas o que esperar de uma geração pautada na liquidez, em que fotografias são virtuais e deletáveis, em que momentos desaparecem em 24 horas? Em que a troca de cartas é mera coisa do passado e que e-mail são deletáveis.
Haverá registro para resgate de memórias? Hoje, mais do que nunca se registra, mas pouco é durável. Fotografias para registro são tiradas em estúdio, nada é vivido ali e as momentâneas, que poderiam apontar realidade, são armazenadas de modo virtual e, rapidamente, se perdem. George Orwell, em 1984, apresenta a destruição de provas concretas e registradas para alterar a história, como será o registo historiográfico provido por algoritmos e pixels?
Quiçá, a literatura encontre novas formas de resgate e seja a única maneira de concretude e a forma de resistência. Para Bauman: “A moderna cultura líquida não sente mais que é uma cultura de aprendizado e acumulação, como as culturas registradas nos relatos de historiadores e etnógrafos. Em troca, parece-nos uma cultura de desapego, descontinuidade e esquecimento”. Assim, vivenciamos “culto à satisfação imediata”: “O que antes era um projeto para “toda a vida” hoje se tornou um atributo do momento. Uma vez projetado, o futuro não é mais “para sempre”, mas precisa ser continuamente montado e desmontado”. Quero, de maneira utópica, não acreditar nessas objeções pessimistas. E que a literatura seja nossa forma de resistência, pois a arte torna-se a maneira de resgate, de pausa, de pensamento e registros. A literatura registra nosso tempo, nossa cultura, nossa individualidade e pensamento, é a maior forma de nos garantir memórias. Resta-nos saber se ainda há tempo para a literatura?

Karine Bueno Costa, Professora de produção textual no Colégio São José-PU. Graduada em Letras: Português/Espanhol. Pós-graduada em Língua Portuguesa e Literatura. Colunista do Factótum Cultural.
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