“Qoheleth, uma voz altiva no contexto das filosofias”
Por Charles Santiago

Depois de um bom tempo distante das páginas da Factótum, escrevo-lhe, meu caro leitor, para refletir sobre um livro histórico, polêmico e teológico, Qoheleth: traduzido do hebraico para o grego como Eclesiastes.
Não pretendo discutir o mérito da autoria do Eclesiastes, debate sempre recorrente entre os críticos, mas, fazer coro ao que é consagrado pelos estudiosos, a saber, a obra é atribuída ao rei Salomão, o sábio. Faço isso pelo seguinte motivo: o cânon judaico não é um documento bibliográfico, mas, antes de tudo, conforma-se em uma espécie de sermão filosófico/teológico, que é dirigido à juventude.
No que se refere à tradução do texto bíblico, emprego livremente aqui, para Qoheleth, o termo Mestre, diferentemente da tradição recorrente que o traduz como o pregador.
O conceito de mestre, com toda sua riqueza, remete, quase sempre, a uma terminologia política, significativa, que pode ser ajuizada como ensinar/aprendendo e aprender/ensinando, ideação do escrito religioso: reunião em assembleia para produção e vivência de saberes.
É sabido que, para muitos leitores desse texto sapiencial, tomados por um sentimento filosófico, existe semelhança entre o Eclesiastes e as filosofias do niilismo, do pessimismo e do existencialismo. Basta improvisar uma rápida pesquisa para notar o número de produções acadêmicas e literárias que versam sobre essa possível relação dialógica e, por vezes, confusa. No entanto, nunca é demais sobrepor, alhos não são bugalhos.
É certo que, passando os olhos, mesmo de relance, já nos primeiros capítulos de O Mestre, pode ser observada uma preleção existencialista/pessimista que pulula em aforismos filosóficos: “todas as coisas trazem canseira. O homem não é capaz de descrevê-las”.
Lendo com um olhar curioso e mais atento, os primeiros versículos de O Mestre testemunham aporias que, certamente, convergem para um materialismo filosófico: “que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol?”
A bíblia, no Brasil, é negligenciada como fonte literária. Isso ocorre por diversos motivos que, no momento, não é importante entrever. Todavia, uma assertiva é famosa e agitada no meio acadêmico, sobretudo, quando se pensa a concepção de trabalho: “Você comerá seu pão com o suor do seu rosto”. Paraíso, liberdade são retirados do homem e, como danação, terás que trabalhar para sobreviver. Faço notar que o trabalho não é para viver, mas, pelo contrário, o infeliz é condenado a uma vida de sobrevivente.
Veja bem: esta é a mais famosa das passagens bíblicas que circunscrevem o mundo do trabalho, mas, é preciso dizer, não é a única. O Mestre, no Eclesiastes, traz à tona uma outra miragem: aborda-o a partir de uma perspectiva social e política: “de novo olhei e vi toda opressão que ocorre debaixo do sol: vi as lágrimas dos oprimidos, mas não há quem o console”. Eu não sei você, leitor, mas eu, no instante da leitura, lembrei-me do velho Marx.
À luz desse olhar assombroso, é possível, também, objetar uma correlação com o niilismo: “o que foi tornará a ser, o que foi feito se fará novamente; nada há de novo debaixo do sol”. Para o Qoheleth, a vida é um eterno retorno, uma combinação sucessiva de repetições que não fazem o mínimo sentido.
Os familiarizados com o Eclesiastessabem que o texto é imagético. Não é um documento fácil, é digno de nota. Observe que “o nada é novo debaixo do sol” significa, entre outras coisas, que todos, indistintamente, uma vez largados no mundo, são livres para viver autenticamente ou deixar-se repetir: viver inutilmente, gastar-se ao sopro do vento.
O texto esconde dois tipos humanos, todos eles se repetem: o que compreende o drama humano e vive sua tragédia, como também, o que busca o bem material, o prazer, a riqueza como formas de dar sentido para uma existência miserável. Tipologias que, debaixo do sol, não se cansam de se repetir.
Semelhante pensamento pode ser encontrado em Nietzsche, filósofo niilista: “tudo vai, tudo volta; a roda da vida gira sem cessar. Tudo morre; tudo volta a florescer; correm eternamente as estações da vida. Tudo se destrói, tudo se reconstrói, eternamente se edifica a mesma casa da existência”. É justamente por isso que, para muitos leitores do texto sapiencial, os escritos de Nietzsche se correlacionam com o Qoheleth, mais do que isso, criam colóquios.
Não é à toa que Machado de Assis fora certeiro: “no Eclesiastes há tudo para todos!”.
Próximo da assertiva machadiana, é lícito dizer que nem todos compreendem o seu tudo. Tudo é muita coisa: é a transitoriedade descompassada de sentidos, como também, o protesto contra a falibilidade humana, “a vida que o vento leva, que não se é memorável”, o tipo desprezível de homem.
A temática da volatilidade, para nosso mestre, não é simplesmente um fatalismo filosófico, mas, sim, uma travessia para a vida que pode ser: egrégia e autêntica, mesmo finita. A vida de um tipo superior de homem que, mesmo ciente de sua desgraça, celebra com júbilo: “desfrute a vida com a mulher que você ama, todos os dias desta vida sem sentido que Deus dá a você debaixo do sol”.
O Qoheleth, na sua caminhada de mestre, buscou, ao longo de sua jornada, experimentar/conhecer a felicidade, o real sentido da existência humana, mas, como artesão do saber, teve sua primeira conclusão: “que grande inutilidade! Nada faz sentido!”. A vida é somente um vale de lágrimas: nascer, sofrer e morrer: um conglomerado de ciclos e de estações que passam depressa.
A conclusão não é retórica, mas é parcial. Mesmo que o mestre, rei de Israel, tenha sido sábio, famoso, rico, boêmio e pôde, como nenhum outro homem, experimentar de tudo, viver loucamente seus dramas, dilemas e, ao final dessa sua vida de buscas e de experiências, concluir que “tudo é ilusão”, deixou pistas para além dessa existência miserável: a vida temente a Deus.
Tudo é ilusão, exceto Deus. Deus é o caminho para o sacolejar miserável da existência humana. Aqui, o alho se distingue do bugalho: diferentemente do niilismo, o mestre atina para uma saída, a paragem em Deus. O Qoheleth é conclusivo: “lembre-se do criador nos dias de sua juventude […] obedeça a Deus e a seus mandamentos”.
Buscando a última palavra, considero que o Eclesiastes é um texto dirigido à juventude. Para tanto, o mestre, já na sua velhice, persegue, com seu sermão, uma trilha auspiciosa: anunciar os dissabores da existência humana. Por isso, é categórico: “tenho visto o fardo que Deus impôs aos homens”, fazê-los viver em um mundo de ilusões.

Charles Santiago é filósofo, professor e escritor. Colunista da Factótum Cultural. Autor do livro Filosofia Política.
Os artigos publicados, por colunistas e articulistas, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Factótum Cultural.
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