Mulher, feitiçaria, justiça e revolução: Maria Mulambo das Sete Catacumbas, presente!
Por Bruna Domingues

Quem com ferro fere
Com ferro será ferido
(…)
Mandaram para mim
A coruja me visitar
Eu chamei Maria Mulambo
Para me ajudar.[1]
gargalhe-se!
foi numa noite de lua cheia que eu ouvi falar da moça. valente, amante, feiticeira, fogosa, audaz, decidida, justiceira, vingativa, encantada, dona do corpo! Dia desses, estimados leitores, voltando para casa depois de uma gira na mata, a qual tive o prazer, a honra e a sorte de assistir, ouvi um pouco sobre a história de uma Pombagira: Dona Maria Mulambo das Sete Catacumbas.
Laroyê!
as palavras contadas pelo Pai de Santo[2] – que recebe a moça, acalantadas pelo encantamento da noite enluarada, soaram como batidas de tambor, que por sinal acompanhavam as batidas do meu coração. ritmo, paixão, encantaria, luta e poesia! Arreda homem, que aí vem mulher!
senhora da vida e da morte,
luz e sombra,
sagrada e profana,
gira-mundo, na barra da sua saia!
foi lá pras bandas de Portugal,
nos idos de muito, muito, muito antigamente
havia uma moça bonita, enfeitada, quente.
esposa de um distinto comerciante.
senhora da vida e da morte,
luz e sombra,
sagrada e profana,
gira-mundo, na barra da sua saia!
fugindo de uma terrível peste que assolava a cidade,
as ondas do mar levaram o casal
para uma cidade chamada Lira
lugar sem culpa, onde perder-se também era caminho.[3]
senhora da vida e da morte,
luz e sombra,
sagrada e profana,
gira-mundo, na barra da sua saia!
encantada com tamanha perdição
o fogo que atiçava por debaixo das saias da moça
refletiu o brilho da palavra liberdade
nas estrelas de seus olhos castanhos.
senhora da vida e da morte,
luz e sombra,
sagrada e profana,
gira-mundo, na barra da sua saia!
alumbrada pela vida libertina da cidade,
a moça decide se esconder das vistas de seu esposo
até que ele fosse embora.
após dias de procura inútil, a moça se liberta de vez.
senhora da vida e da morte,
luz e sombra,
sagrada e profana,
gira-mundo, na barra da sua saia!
foram dias de paixão e gozo à vontade.
ser por inteira ela queria,
aprendeu e ensinou sobre amor,
liberdade, sexo e feitiçaria.
senhora da vida e da morte,
luz e sombra,
sagrada e profana,
gira-mundo, na barra da sua saia!
quando suas joias acabaram,
a moça conheceu também a miséria,
passou a distribuir seu corpo e desejo
no porto, em troca da sobrevivência.
senhora da vida e da morte,
luz e sombra,
sagrada e profana,
gira-mundo, na barra da sua saia!
quando a fama da dama quente do porto se espalhou,
enfurecido e guiado pelo ódio,
com um bando de brutamontes seu marido voltou.
sangue, pancada, estupro violência e morte.
até quando a honra dos covardes será lavada
com o sangue das moças insubmissas
que dizem não ao patriarcado
e sim para si mesmas?
senhora da vida e da morte,
luz e sombra,
sagrada e profana,
gira-mundo, na barra da sua saia!
nem mesmo a morte pode calar uma mulher
que não nasceu para obedecer.
vingativa e justiceira, a alma da moça voltou para queimar,
maltratar e matar um por um dos seus assassinos.
senhora da vida e da morte,
luz e sombra,
sagrada e profana,
gira-mundo, na barra da sua saia!
até que um dia, encontrando consolo
e acolhimento nos braços da Dona Maria Padilha
a alma da moça encantou, surgindo assim
Dona Maria Mulambo das Sete Catacumbas.
Laroyê, Maria Mulambo Das Sete Catacumbas!
senhora da vida e da morte,
luz e sombra,
sagrada e profana,
gira-mundo, na barra da sua saia!
[1] Ponto de Maria Mulambo.
[2] Pai de Santo do Terreiro “Casa Santa Cruzeiro de Luz”, na cidade de Porto União, no Estado de Santa Catarina.
[3] Referência à Clarice Lispector, in “Cidade Sitiada”.

Bruna Domingues, Professora de filosofia da rede estadual de ensino de Santa Catarina. Graduada em filosofia. Mestre em Ensino de Filosofia (PROF-FILO/UNESPAR). Poetisa amadora, feminista, revolucionária e apaixonada. Colunista do Factótum Cultural.
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