Nadezhda Krupskaia: uma pedagogia revolucionária
Por Cellem Daylane Sansana Ferreira e Mario Cesar Ferreira

São Petersburgo. O ano era 1905, dia 9 de janeiro. Cerca de 200 mil manifestantes em frente ao Palácio de Inverno não tiveram chance nem de ao menos de apresentar ao czar suas reivindicações . Foram pegos de assalto e massacrados. A esmagadora ação violenta das tropas do Nicolau II contrastava com a forma pacífica com que os manifestantes protestavam, assim como com o banho de sangue sobre a neve. Da mesma forma que contrastava a vida de privilégios que a família Romanov levava, e de quão miseravelmente vivam os camponeses e a recém-população de operários famintos e cansados de tamanha exploração. Era o Domingo Sangrento. Era o início da Revolução Russa.
As greves que já ocorriam em São Petersburgo, também estouraram em outras cidades, como Ivanovo-Voznesensk, que se destacava por sua industrialização. O Domingo Sangrento não trouxe apenas mais greves, mas a ação violenta do czar também trouxe como consequência a formação dos sovietes (conselhos), símbolo de resistência operária e que resultaria na tomada de poder em 1917, mas que foram alvos de intensa perseguição do governo durante todo o processo revolucionário.
A Rússia há muito tempo passava por sérios problemas. De Alexandre II, que morreu sem as pernas, em 1881, após a quarta tentativa da “Vontade do Povo”, – grupo de caráter terrorista que ansiava por transformações mais imediatas na história, por considerar que o curso das transformações ocorriam lentamente – a Nicolau II que, em 1917, acabou por abdicar o trono russo.
Com um regime absolutista, relação de servidão, com resquícios de elementos feudais, a fome vitimava a população a cada inverno. Mesmo com algumas medidas tomadas por Alexandre II, como a de tentar acabar com o trabalho servil, a crise econômica e social continuava. Na passagem para o século XX, as condições de vida e de trabalho só pioraram. Alexandre III fez questão de manter o regime absolutista, até como uma resposta ao que havia acontecido com seu antecessor. A exploração e a vida de miséria dos camponeses continuavam. Os privilégios do czar e de sua família também.
Em 1890, a industrialização começa a estabelecer novas relações de trabalho na Rússia. A Transiberiana, que teve um orçamento somente superado pelo investimento na Grande Guerra, diminuiu distâncias, pois ligava São Petersburgo, então capital, ao porto de Vladivostok. A extrema Rússia europeia ao Pacífico. A construção foi supervisionada e abençoada pelo czar Alexandre III e sua esposa. Os capitalistas industriais, na sua maioria capitalistas franceses, ansiavam por lucros na mesma velocidade em que as fábricas passavam a funcionar. Da mesma forma, a nova classe operária também se conscientizava, ao passo em que a exploração e a vida desgastante e miserável não demoraram a ser percebidas.
Em 1893, a capital da Rússia recebia um dos principais personagens daquele que seria, de acordo com o historiador Hobsbawn, “de longe o mais formidável movimento revolucionário organizado da história moderna” (HOBSBAWN, 1995, p. 62), a Revolução Bolchevique. Com seus ideais revolucionários e suas inspirações marxistas de Herman Krassin, Vladimir Lenin logo foi percebido pela esquerda local. Entre os pertencentes desses grupos estavam, Nadejda Krupskaia, com quem dividiria até a sua morte, em 21 de janeiro de 1924, um relacionamento conjugal, exílios, fugas, panfletagens, produção intelectual, alfabetização, congressos e formação da conscientização da classe operária, mas, sobretudo, a formação do socialismo russo.
A Revolução de 1917 entregou o poder aos mencheviques – grupo liderado por Martov, que defendia primeiro a Revolução Burguesa e, somente depois, a Revolução Socialista. Desde 1903, a divisão entre o grupo de Lenin e Krupskaia (bolcheviques) e os mencheviques foi inevitável. Os bolcheviques defendiam a passagem imediata para o Socialismo.
A República Democrático-Burguesa, ou Governo Provisório, sob o comando de Alexander Kerenski, anteriormente pelo príncipe Georgy Lvov, não atendeu aos anseios da população. Um mês depois, as Teses de Abril, resumidas em três palavras “Paz, terra e pão”, são apresentadas por Lenin e ganham força na Rússia. Cada vez mais o “todo poder aos sovietes” parecia mais próximo de ser concretizado.
Em 26 de outubro de 1917, com o auxílio dos sovietes, dos bolcheviques Joseph Stalin e Leon Trotski – anteriormente menchevique, Lenin derrubou definitivamente o Governo Provisório liberal-burguês. A Duma (Assembleia) foi substituída pelo Soviete Supremo (assembleia legislativa formada por trabalhadores de todos os segmentos da sociedade russa). Lenin anunciou a realização de mudanças previstas nas Teses de Abril.
Neste contexto, estava inserida Nadezhada Kruppskaia. Uma personagem importante dentro da história da Rússia, figura de renome do Partido Comunista da União Soviética, uma das principais figuras responsáveis pela criação do sistema educativo soviético e uma pioneira no desenvolvimento das bibliotecas russas. Nascida em 26 de fevereiro de 1869, Krupskaia, iniciou cedo seu trabalho como professora para completar a pensão recebida após o falecimento de seu pai e a baixa remuneração de sua mãe. Poucos anos depois, começou a ministrar aulas em uma escola dominical para operários.
Seu pai, Konstantín Krupski, um militar e descendente de uma família com parentescos com a nobreza que havia empobrecido, e sua mãe, Elizabeta Tistrova Krupskaia, uma professora que havia ficado órfã na infância e sempre batalhou por sua sobrevivência. Aos longos anos de casados sempre simpatizaram com os ideais vinculadas às mudanças sociais, principalmente no
sentido de superação da pobreza e da desigualdade.
O primeiro pensador a influenciar Krupskaia foi o literato e anarquista cristão Lev Tolstói. Ele criou em sua propriedade uma escola para os filhos dos camponeses em um sistema diferenciado, sem hierarquia, sem autoridade. Porém, foi posteriormente com Marx que Krupskaia viu uma maior capacidade de análise social do mundo real ao considerar os mais diversos aspectos da sociedade para a compreensão do exploratório sistema capitalista.
Considerada como uma pedagoga comunista, Krupskaia debateu e agiu para uma formação de crianças e jovens para a construção de uma sociedade sem classes, na qual os sujeitos fossem prioridade em detrimento do capital. Suas primeiras ações junto aos operários aconteceram através da educação, dedicando-se a ensiná-los não somente o conteúdo escolar, mas também para integrar o sujeito à sociedade despertando consciências através dos preceitos marxistas. Porém, em pouco tempo os operários de czar visitaram a escola incomodados com a quantidade de conhecimentos obtidos pelos alunos. Mais que depressa mandaram fechar a escola. Nunca seria bom para o governo que os operários e filhos dos operários soubessem mais do que precisavam para trabalhar incansavelmente nas máquinas. Dessa forma, o governo manteria a “ordem” e um sistema de privilegiados.
Entre 1894 e 1895, Krupskaia e Lenin se conhecem e estreitam relações por conta do movimento operário. Ela já uma militante com contato direto com os trabalhadores que eram, em sua maioria, alunos da escola dominical e ele formou círculos operários, onde instigava o grupo a indagar sobre suas vidas, suas práticas e tendo por base a teoria marxista e sua relação com a vida real. Ambos estavam envolvidos no esclarecimento dos proletários.
Krupskaia e Lenin se tornaram grandes companheiros na luta pela igualdade de direitos e orientação para os grupos de trabalhadores. Mesmo Lenin sendo preso e exilado por panfletagem indevida, Krupskaia continuava seu trabalho vestindo-se de operária e indo até a porta das fábricas para fazer contato com os trabalhadores.
Posteriormente, Krupskaia também foi pega e presa. Anos depois, foi julgada, culpada e condenada a uma deportação de três anos. Assim, Krupskaia conheceu seu primeiro exílio.
Ao final de sua condenação em 1901, iniciou um exílio na Europa, junto com Lenin, agora já casados, participando intensamente da organização de uma social-democracia russa no exterior.
Em 1917, com o início da Revolução, Krupskaia pode voltar para Rússia onde, neste período se aproximou do movimento de mulheres, sendo delegada russa na 2ª Conferência Internacional de Mulheres, em Berna, organizada por Clara Zetkin, em março de 1915 – durante a Primeira Grande Guerra, integrou o Comissariado Nacional para a Educação e participou da construção das escolas modelos, chamadas de Escolas-Comunas. Ela presidiu a Seção Científico
Pedagógica do NarKomPros, que era a principal na criação de programas escolares para o 1º e 2º graus (Cf. FREITAS, 2009, p.12-14). A educadora dedicou-se a acabar com o analfabetismo no país, estabelecimentos para instrução de adultos foram criados, assim como creches e jardins de infância, buscando uma educação diferenciada, que proporcionasse a formação de sujeitos solidários.
Mesmo depois da morte de Lenin, Krupskaia continuou à frente dos projetos da União Soviética e em seu trabalho político com ênfase na educação. Contrária às ideias de Stalin, ela fez parte do grupo de oposição do governo stalinista até seu falecimento em 27 de fevereiro de 1939, um dia depois de completar 70 anos. Os restos mortais da educadora foram cremados e depositados ao lado do mausoléu de Lenin, no muro de Kremlin, na Praça Vermelha.
Pode-se afirmar que a educação proposta por Krupskaia era uma educação revolucionária: oferecia o conteúdo que os operários não tinham acesso, pois estava somente direcionado para alguns privilegiados da Rússia, enquanto debatia elementos da organização econômica, política e social sob a perspectiva do marxismo para que compreendessem seu lugar no mundo, tomando consciência de si (Cof. Bobrovskaia, 1940).
Ela compreendia a situação russa e buscava, através da educação, despertar consciências que um dia poderiam mudar a sociedade. Não se pretende colocar Krupskaia como superior aos outros revolucionários, isso não seria possível e sim tendencioso. Almeja-se, simplesmente, ressaltar sua importância junto aos intelectuais que contribuíram para a construção do socialismo russo.
A educação foi uma constante na vida de Krupskaia, esteve presente desde seus primeiros trabalhos profissionais, como professora particular, até sua morte, já como reconhecida educadora comunista por todo o bloco soviético. Através da educação, ela acreditou ser possível a transformação do sujeito e, por consequência, a transformação de toda sociedade, por sujeitos conscientizados. Considerou, concomitantemente, necessárias a apropriação do conhecimento acumulado ao longo dos séculos pela sociedade e a consciência de mundo, que envolve também a consciência de si (LODI, 2018, p.73).
Muitas vezes, quando se cita Krupskaia em alguma obra, seu nome sempre aparece seguido de “mulher de Lenin”, “esposa de Lenin”, como se isso fosse o único qualificativo de suas ações. Deve-se ressaltar que a influência de Lenin pode ser notada no trabalho de Krupskaia, o que é natural, pela capacidade de adaptação das ideias marxistas à realidade russa. No sentido educacional, Krupskaia possuía uma prática, uma experiência, que Lenin não tinha: a de ser educadora, mas, teoricamente, Lenin influenciou a geração que fez a revolução acontecer, isso não seria diferente em Krupskaia.
REFERÊNCIAS
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FREITAS, L C de. A luta por uma pedagogia do meio. In: PISTRAK, M. M. A Escola-Comuna. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
GOLDMAN, Wendy. (2014). Mulher, Estado e revolução: política familiar e vida social soviéticas, 1917-1936. São Paulo: Boitempo.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
LODI, Samantha. Nadezhda Krupskaia: uma estrela vermelha. Uberlândia, MG: Navegando publicações, 2018.
______________. Nadezhda Krupskaia: por uma educação revolucionária. Germinal: Marxismo e Educação em Debate . Disponível em https://periodicos.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/view/27387/18943. Acesso em 20 de abr. de 2021.
NETTO, José Paulo. O que é stalinismo. São Paulo: Brasiliense, 1986.
PELLEGRINI, Marco; DIAS, Adriana Machado; GRINBERG, Keila. Novo olhar história. São Paulo: FTD, 2013.
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REIS FILHO, Daniel Aarão. As revoluções russas. In: REIS FILHO, Daniel Aarão;FERREIRA, Jorge; ZENHA, Celeste. (Org.). O século XX: o tempo das crises. São Paulo: Civilização Brasileira, 2003.
___________. As revoluções russas e o socialismo soviético. São Paulo: Editora UNESP (Coleção Revoluções do Século XX), 2003. SADER, Emir. Século XX, uma biografia não-autorizada: o século do imperialismo. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000.

Cellem Sansana Ferreira é formada em Pedagogia, especialista Neuropsicopedagogia e Ensino de Filosofia. Atualmente mestranda pelo PROF-FILO com pesquisas em Filosofia, educação e infância.
Mario Cesar Ferreira é formado em Licenciatura em História com pós-graduação em Ensino de Português e Literatura. Professor da rede particular e pública do estado do Paraná.
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