🔮 A escrita salvou minha sanidade. Ou pelo menos organizou minha loucura em parágrafos

Quando eu era criança, criei um super-herói chamado Super Cola Coca. Isso mesmo: Cola Coca. Invertido. Porque eu sempre fui da turma do contrário. Contrário à porra toda, diga-se de passagem. O herói era poderoso, tinha uniforme, missão e tudo mais — e, claro, combatia o mal com muita Coca-Cola (no nome e no espírito). Era uma espécie de justiceiro gaseificado, movido a cafeína e rebeldia, pronto pra explodir bolhas de injustiça com estilo efervescente. Nada de colar o mundo — ele agitava o mundo.

Além da ideia, teve o ritual.

Usei um computador da década de 90 — daqueles que demoravam mais pra ligar do que a gente pra sair da cama – e imprimi tudo numa impressora barulhanta com papel contínuo, aquele com bordas perfuradas que dava gosto de puxar depois.
No livrinho, tinha história e ilustração.
Eu escrevi, desenhei, revisei, imprimi e enviei para a Coca-Cola (a empresa, não o herói) como quem manda um feitiço engarrafado pro Olimpo das multinacionais. Vai que, né?

E não é que colou?

Um tempo depois, me ligaram dizendo que eu tinha vencido um concurso. Me convidaram pra conhecer a fábrica, ganhei brindes, presentes, refrigerante à vontade e um ego inflado que durou uns bons meses.
Foi um momento épico na infância.
O dia em que o mundo disse: “continue, fi.”
Eu era só um menino do mato com uma ideia colada na cabeça.
E ali, sem saber, nasceu o mago.

Desde então, nunca mais parei.

Escrevi em diários, agendas, cartas, holerites, notas promissórias, e-mails que não mandei, petições que eram quase poemas tristes, artigos, livros, legendas de Instagram e devaneios às três da manhã.
Escrevi cartinhas de amor pras meninas (algumas nunca entregues, outras que causaram pequenos desastres sentimentais — mas tudo bem).
Escrevi pra entender. Pra fugir. Pra lembrar de mim.
Escrevi pra não explodir — e também pra não sumir.
Hoje, escrevo para não enlouquecer.

Teve uma época, ali no começo da adolescência, que fiz até curso de datilografia, na velha máquina de escrever, porque comecei a trabalhar num escritório. Enquanto uns batiam laudos, eu já ensaiava crônicas disfarçadas. A tecla “N” enroscava, mas as ideias corriam soltas como se tivessem patins.

Foi só muito tempo depois que entendi que escrever era magia.
Não magia de palco.
Magia antiga.
Daquelas que envolvem símbolos, silêncio e risco.

Descobri que na Idade Média, a palavra “gramática” era prima da tal “gramarye”, que não era o nome de uma influenciadora esotérica, mas sim o termo pra conhecimento oculto. E que, em inglês, “spell” quer dizer ao mesmo tempo soletrar e lançar feitiço.

Tá tudo aí. Era só juntar.

Quem escreve, conjura.
Quem soletra, invoca.
Quem domina a palavra, toca o invisível.

E a verdade é que eu escrevi a vida inteira.
Comecei com papel perfurado e herói invertido, mas segui escrevendo em tudo: fiz Direito, depois pós, depois mestrado — e cada etapa vinha com uma monografia, uma dissertação, um artigo jurídico com cara de feitiço formal.
Escrevi como estagiário, como servidor público, como professor, como advogado… e agora, como escritor.
A vida trocou de cargo, de sala, de figurino.
Mas a caneta sempre foi a mesma.
No fim das contas, eu só mudei o uniforme.
Sempre fui um homem que escreve.

E aí tudo fez sentido. Porque quando escrevo, parece que entro em transe.
Sento diante do teclado como quem entra num altar.
Não tem vela, mas tem café frio.
Não tem túnica, mas tem dor.
Não tem cântico, mas tem frase mal escrita tentando virar verdade.
É um ritual.
E como todo ritual, exige sacrifício: do ego, do tempo, da expectativa.

Como já dizia Alan Moore, escrita e magia são a mesma coisa. Ambas têm o poder de modificar a consciência humana, de alterar realidades — internas e externas. O escritor é um tipo de xamã urbano, um alquimista do verbo. Quando escrevemos com verdade, não estamos apenas juntando palavras — estamos mexendo nas estruturas invisíveis do mundo. Talvez por isso livros mudem destinos, revelem verdades e plantem ideias que sobrevivem ao tempo. Talvez por isso escrever seja tão perigoso — e tão necessário.

Às vezes sai um feitiço. Outras vezes, só fumaça.
Mas eu sigo escrevendo. Porque sei que a escrita salva.
Nem que seja só a mim.

E se um dia alguém, do outro lado, ler um texto meu e pensar:
“ufa, não sou o único doido tentando colar os cacos”…
então beleza.

A mágica funcionou.

O Super Cola Coca fez seu trabalho.
Mesmo que hoje ele esteja mais pra herói aposentado, de pantufa e olheiras, colando o que der — com palavras.

No fim das contas, talvez seja por isso que eu ame tanto os livros.
Não só pelos que escrevo — mas principalmente pelos que leio.
Cada página aberta é uma janela pra outro tempo, outro ser, outro universo.
Como diria Carl Sagan, um livro é a prova de que os humanos são capazes de fazer magia.

Mas isso, ah…
Isso é conversa pra outra noite de insônia.


Escrever é magia: cada palavra é feitiço que transforma caos em cosmos. Como disse em Escrever é um Ato de Magia (e o Escritor, um Mago Esquecido) — e, como em Você é um Computador: Como Corpo, Mente e Alma Imitam a Tecnologia (com bugs), escrever é depurar bugs da alma. No fundo, cada texto é um ritual de reprogramação da própria consciência.

E não se esqueça: toda segunda, nossa coluna “Escrever para Não Enlouquecer” traz humor para os dias difíceis. Sábado a gente fala sério — mas só porque o universo exige equilíbrio.

Neemias Moretti Prudente é escritor, advogado, filósofo, professor e editor-chefe do Factótum Cultural. Se perdeu entre os livros, os filmes, os boletos e os rituais de Ayahuasca. Escreve para não enlouquecer — e às vezes enlouquece para escrever melhor.

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