Como sorrir sobre as ruínas?
Por Pâmela Bueno Costa

luz, câmera, ação:
sonhando.[1]
“Ora com um sorriso no rosto, ora com uma pedra na mão”
Sérgio Vaz.
“a vida dói, mesmo quando nós a enchemos de palavras belas,
tão necessárias para o pão que alimenta nossos dias sem trigo”
Há dias em que é difícil escrever. Como diz bell hooks: “é difícil dar nome a nossa dor”. Começo esse texto, instigada com a questão do livro Literatura, pão e poesia, do poeta e agitador cultural Sérgio Vaz, em seu texto intitulado “Sonho de Giz”: “Mas, hoje, como sorrir sobre ruínas?” (2011, p. 132).
Nosso tempo, marcado por tanta tristeza, tanta dor e desalento: sorrir já não conseguimos. Precisamos da poesia, da palavra amiga, do afago, da revolta, mas também precisamos do pão. Mesmo sabendo que a alegria é um ato de resistência. Não conseguimos mais sorrir. E como poderíamos sorrir sobre as ruínas? Nossa vida virou um filme de terror.
A vida arde. E a realidade da vida, como nosso latino americano mencionou: “ao vivo é muito pior!”. Luz, câmera, ação – as câmeras flagram: “que tempos são esses que é necessário defender o óbvio?” – Questionou Brecht em um tempo em que a realidade da vida ardia, continua ardendo e a questão se torna atual. Que tempos são esses marcados por um cenário de horror? Proporcionado por uma crise sanitária, a pandemia do Covid-19 está acabando com a vida e alegria de viver. Fora a pandemia, vivemos um circo de horrores: crise política, econômica, moral e por que não Estética? A vida não nos permite sorrir. O mal se tornou banal, vivemos em um contexto de banalização do mal e pela boçalidade do mal.
Recordo de uma manhã, nesta semana, fazia muito frio, mas o sol já abraçava o corpo com sua quentura. Eu estava indo trabalhar, e caminhando – no meio do caminho tinha uma árvore – tinha uma árvore no meio do caminho; ela sorriu para mim. Parei, fiquei olhando por alguns segundos. A vida sendo, apesar de tudo, bela. Lembrei do poeta Manoel de Barros e fiquei em estado de árvore: “as árvores me começam”[2]. Fui tomada por uma beleza contagiante, mudando meu estado de espírito, retribuí o sorriso. A vida continua apesar de tudo, e a beleza resiste, a beleza da natureza resiste aos tempos tão obscuros. Ela precisa resistir!
Em tempos como o nosso, aos poucos vamos perdendo o encantamento pelas coisas, mas é preciso driblar o desencanto. Porém, em tempos tão sombrios, sonhar com um dia tranquilo e feliz não é possível. Ainda é permitido sonhar?
Chegando ao trabalho, o sol radiante no céu, esquentava as mãos geladas, um vento que beijava as pontas das orelhas, não a ponta do nariz, pois usar máscara, além de ser um ato de amor e proteção contra o vírus, protege do frio. No colégio, em determinada turma, trabalhei o poema “O direito ao delírio”, de Eduardo Galeano , poesia que inspira a pensar e a projetar uma sociedade melhor e instiga a pensar em nossas utopias. Provocando os alunos a pensar em um mundo melhor, mais digno e igualitário para todas as pessoas:
– “mesmo que não possamos adivinhar o tempo que virá, temos ao menos o direito de imaginar o que queremos que seja [3]”.
Em processo de estimular o pensamento e reflexão, após a leitura do poema, perguntei para a turma: “Qual o seu maior sonho?”. Um aluno respondeu – “ mas, eu não tenho mais nenhum sonho, professora”. Essa resposta veio como um soco de realidade, no nosso país é proibido sonhar. Vivendo em um mundo marcado pela fome, violência, pelo negacionismo, pelo preconceito de gênero, étnico-racial, sexual, religioso e a lista é imensa, não conseguimos mais sonhar. Estamos ficando sem esperança. Luz, câmera, ação – “ oi, estão me ouvindo”? – “ a câmera está funcionando?”. Só quem é professor, nesse mundo de aulas remotas, sabe como se tornou difícil dar aula. Como tem sido exaustivo esse ambiente técnico, perdeu-se a humanização, sem a relação com o outro, que, muitas vezes, não responde, não comunica e não se faz ouvido. Ainda mais quando você está no sistema híbrido – alunos em sala e também no ambiente virtual. Nesse momento, a pergunta inicial bate e nos faz pensar: como sorrir sobre as ruínas?. Não podemos seguir e fingir que está tudo bem. Não conseguimos sorrir em meio a tantas mortes que poderiam ter sido evitadas. Por mais que algumas pessoas estejam anulando a realidade, com suas redes sociais, seus vídeos, as câmeras ligadas em suas danças de tiktokers, a realidade da pandemia continua terrível. Estamos sufocando!. Essa indignação se intensifica a cada dia, é preciso resistir, é preciso sobreviver. E a resposta do meu aluno dói, pois um adolescente perder a esperança, os sonhos, é entristecer toda uma sociedade. Falhamos.
Luz, câmera, ação. Nessa sociedade do espetáculo, o filme de horrores continua a rodar. Nossa vida não tem importância, uma política de morte, que matou e vem matando os sonhos de milhares de pessoas. Câmera ligada – está cada dia mais difícil enfrentar esse mal que assola nossa sociedade. Quando digo isso, é só lembrar dos últimos acontecimentos, e enfatizar a ação do genocida da República, em meio a mais de 400 mil mortos, promoveu aglomeração e carreatas com motociclistas, sem máscara, um abuso total. O Brasil sangra. Nosso mal tem nome, e longe de ser um messias, é o nosso destruidor. Estamos em um colapso, aniquilamento e extermínio: em ruínas.
Deliramos, precisamos dos sonhos para nos mantermos vivos. Para acreditar que ainda podemos voltar a sorrir. O poeta vira-lata Sérgio Vaz nos inspira a pensar: “é necessário o coração em chamas para manter os sonhos aquecidos. Acenda fogueiras! (2011, p. 15). Vamos reacender nossas fogueiras, e as fogueiras dos nossos estudantes, vamos almejar novos voos e partir para a luta. Como Luiz Simas afirma: “o contrário da vida não é a morte, mas o desencanto”. Temos que aprender a reencantar-se com o mundo, o que tem sido difícil nas condições que estamos vivendo. Driblar a morte, driblar o sistema que insiste em matar. E há pessoas que provocam esse encantamento, como Luiz Rufino, que nos diz: “a educação talvez possa cumprir essa tarefa, a de recuperar sonhos, pintar outros sentidos, alargar subjetividades e frear o desencanto” (2020, p. 91). Precisamos frear o desencanto!
Voltar a sorrir e a sonhar. Como nos ensina Vaz: “é necessário muito amor, muito amor, mas a raiva é fundamental” (2011, p. 16). Temos que segurar a mão de quem está na trincheira ao nosso lado e ir à luta. “Luz, câmera, ação: nossa luta é todo dia: sorriso no rosto, uma pedra e giz na mão, sonhando!”
…
REFERÊNCIAS:
VAZ, Sérgio. Literatura, pão e poesia. São Paulo: Global, 2011.
SIMAS, Luiz Antonio, RUFINO, Luiz, HADDOCK-LOBO, Rafael. Arruaças: Uma filosofia popular brasileira. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.
[1] Inspirado no texto do poeta Sérgio Vaz “Escritores da liberdade” (2011, p. 128).
[2] Frase do Livro sobre o Nada, trecho 1.3., 2013, p. 311.
[3] Trecho do texto de Eduardo Galeano: “O Direito ao Delírio”.

Pâmela Bueno Costa, professora de filosofia na rede estadual e particular de ensino – SC. Graduada em Filosofia. Pós-graduada em Ensino da Filosofia. Mestre em Ensino da Filosofia PROF-FILO. Cursando terceiro ano de Letras: Português/Espanhol (UNESPAR). Ilustradora amadora e aprendiz de aquarela. Colunista do Factótum Cultural.
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Orgulho dessa Professora maravilhosa que inspira as pessoas com seu jeito encantador de ensinar e estimular o pensamento, obrigada prof. Pamela s2
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Saudade de você, Alzielly! 🥰🥰
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Obrigada pela leitura💓
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